27 março 2009

A HISTÓRIA EM 3 PARTES DO HOMEM

SEM ALMA.

ii -

Com o tempo, todos

na região começaram a achar estranho o comportamento de Lázaro. Evitavam passar por aquelas bandas pra não ter que olhar naqueles olhos, que com os anos escureceram, chegando a ter a cor do firmamento em uma noite sem lua. Não demorou muito pra começar a surgir alguns boatos sobre o menino da caramboleira, que falava com os animais e tentava ler a alma dos outros com seus olhos sem vida.

Certa vez, na época da Folia do Divino Espírito Santo, uma festa religiosa que acontece na época das secas nas várias comunidades da porção norte do estado de Minas Gerais, os foliões vieram da estrada que margeia a serra sem nome, erguendo na frente à bandeira do Nosso Senhor e entoando seus hinos de fé, até a cerca da casa, onde pararam gritando vivas ao Divino Espírito Santo e aos moradores da casa que iriam acolher todo o grupo naquele dia. O pai de Lázaro reuniu toda a família em frente o lugar pra rezarem ali o Pai Nosso com os outros e pedirem a bênção. No final da reza, todos ali beijaram a bandeira clamando proteção, chuva e a eterna misericórdia do senhor que perdoa todos os pecados. Depois os foliões entraram na casa humilde da família, alguns ali com certo receio, porque Lázaro estava sentado sobre a cerca observando cada um do grupo. A mãe de Lázaro ofereceu um pouco de café e leite fresco recém fervido, pra adultos e crianças; ela a essa altura já era mulher feita e depois de quatro filhos já não conservava os traços juvenis que tinha quando se casou, em seu lugar exibia uma expressão de servidão e as marcas inevitáveis daquele que sofre uma vida de privações.

Fizeram ali uma fogueira com toda a lenha que acharam disponível, e os mais velhos se puseram a conversar e a beber, deixando de lado alguns temores como se os seres humanos reunidos ali em volta de um fogo conseguissem espantar todos os medos ancestrais que tinham, que surgem sempre com a noite. Lázaro não conseguia entender essa sensação e de certa forma alimentava dentro de si certo desprezo por essas ocasiões. Via de regra o desprezo sempre recai sobre a curiosidade ávida, e como ele teve essa curiosidade pelas outras pessoas agora, alimentava a fase do desprezo. Com o adiantar da noite alguns dos foliões foram embora, enquanto outros preferiram dormir na casa, se aproveitando mais do pouco conforto que a família tinha pra oferecer. Lázaro ficou cuidando da fogueira, jogando pequenos pedaços de madeira e pano pra alimentá-la, deixando o terreiro iluminado por boa parte da noite.

Na manhã seguinte, encontraram um homem morto em um dos quartos, onde Lázaro e seus irmãos dormiam, e em meio a confusão encontraram a bandeira do Nosso Senhor queimada junto do fogo, praticamente em cinzas. O caso não foi esclarecido, porque não havia marcas de assassinato, mas a queima da bandeira foi atribuída ao rapaz, que ficara acordado além de todos os outros. As pessoas saíram da casa apavoradas, pedindo pra que deus protegesse a todos. A mãe de Lázaro chorou quando lhe disseram que o seu filho tinha parte com o diabo e o pai dele lhe dera uma surra, culpando-o por tudo que havia acontecido. Nem quando apanhou, ele conseguiu chorar, apenas olhava um ponto qualquer da casa, parecendo indiferente a tudo aquilo.

Um ano depois do ocorrido, a mãe de Lázaro morrera de um mal não identificado. Antes havia padecido na cama durante três meses, tendo febre todas as tardes. Depois da viuvez, o pai passou a beber e a descuidar do gado e os irmãos foram morar na cidade com uma tia, irmã de sua mãe. Na casa só ficou o garoto junto do pai, que a cada dia que passava frequentava menos o lugar; até chegar um momento em que não voltou mais, deixando, porém o filho para trás. As terras foram vendidas pra um fazendeiro que mudara recentemente com sua esposa pra região, trazendo-a da cidade num avião bimotor. Ele havia construído uma casa do outro lado da serra Cabavida, onde também tinha comprado terras. O fazendeiro se chamava Geraldo Ferreira e contratou Lázaro pra ajudar na lida da fazenda. Ele tinha cerca de vinte anos quando isso aconteceu; e foi assim que Lázaro Sem-Alma passou a trabalhar pro meu avô, muito antes de eu nascer.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sabe... eu gostei do Lázaro.

Guilherme Ferreira disse...

eu acho ele meio lazarento =T

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.