27 dezembro 2009

Conto de Natal

Começaram ainda na escola, lá pelos quinze (ele) e dezesseis anos (ela). Enfrentaram os pais, algum preconceito de cor (ele negro, ela filha de alemães) e seus próprios medos e paradigmas, porque é isso que melhor fazemos juntos, criar e quebrar paradigmas. Aprenderam a conviver, a contar segredos e a dividir certas cargas da vida; ela aprendeu a chorar, a sorrir e a expressar seu interior passando por cima do sangue gelado dos germânicos. Ele aprendeu a beber e também arriscou suas primeiras palavras numa segunda língua estrangeira. Eles se casariam, teriam filhos, dois, Miguel e Hilda, viveriam em uma casa na parte histórica da cidade onde abririam juntos um escritório de advocacia, e morariam longe dos pais, mas sem mudar da cidade. Ele foi estudar em Ouro Preto e ela ficou. Terminaram o namoro no terceiro período de faculdade (dele). Hoje ele passa as noites de férias em um puteiro chamado Sunshine, bebendo uísque e gastando o dinheiro dos pais. Ela se casou com um tal Tomas Fritsche, tem um filho chamado Joaquim e me disse que quer ter um segundo filho, aos vinte e dois anos. História curtíssima.

30 novembro 2009

A Carioca

Ela era uma tremenda mulher! Daquelas que deixam a gente com vontade de levar pra casa. Por diversas vezes eu realmente tentei, mas antes de efetivamente conseguir ela sempre sorria furtivamente e me dizia um não tão doce que eu não sabia exatamente se me dispensava por asco ou por eu ser um canalha pobretão, tão canalha quanto pobretão, vale ressaltar - porém tenho que dizer que ainda levo certo jeito para a coisa em si.

Aos que não me conhecem, vou me descrever. Sou um velho guará sarnento, como já me chamaram, que trabalha há 25 anos no mesmo departamento do Mistério da Fazenda. Aos olhos de quem me vê, sou um homem que já passou da casa dos 50, com cabelos grisalhos sempre penteados para trás, barba cobrindo o rosto e vestido todos os dias com o mesmo terno cinza fosco cheio de pequenas queimaduras de cigarro. Aliás, no final do dia eu normalmente acendo um charuto e vou fumando com um sorriso pelo caminho entre o ministério e a estação de metrô. Já me disseram que eu tenho um riso de velho safado e, no caso, acho que o velho foi maior ofensa do que o safado.

Já ela, hmm, ela era linda. Mas linda mesmo. Tinha aquele rabo grande que boa parte das cariocas têm, mas não era só isso. A carne macia dos vinte e poucos, a voz sibilante, a cara de falsa inocente e as coxas que as vezes apareciam pela abertura lateral do vestido quando ela se sentava, e bom deus (se é que deus é mesmo bom e gosta de mulher, porque eu não sou muito entendido. Entendido sobre deus, porque eu entendo de mulher), eu sempre chegava cedo para surpreendê-la se sentando pela manhã. Mas enfim, o que importa é que certa noite de chuva eu saía do ministério pelo prédio anexo pensando em como eu acenderia meu charuto com essa merda de tempestade em pleno setembro, onde é que já se viu isso? e lá estava ela, discutindo com o babaca do namorado dentro de um Renault preto. Fingi que ia esperar a chuva parar e fiquei debaixo do abrigo da entrada só assistindo a briga. Não ouvia nada, mas o babaca parecia negar alguma coisa e ela tinha cara de choro. Acendi meu charuto e como quem não quer nada comecei a procurar por um guarda-chuva na maleta que levo sempre comigo. Tudo indicava que ela estaria solteira hoje e eu não ia dar espaço pra outro.

Para minha sorte ela saiu do carro gritando e o filho da puta saiu cantando os pneus, que o diabo o carregasse, porque pra dispensar uma coisinha dessas ele só deve ser burro ou bicha, coisa que eu não era, nem um nem outro. Corri com o guarda-chuva aberto para cobri-la da chuva. Ela mal me viu e me abraçou e como eu suspeitava ela estava chorando. Consolei-a durante mais de uma hora, levei-a até o metrô e de lá pegamos o trem para minha casa. Sentamos num cantinho do último vagão, o que foi difícil por causa da quantidade de gente mas em tudo dá-se em jeito, hehe. Ela chorava no começo e eu fui dizendo que ele não a merecia, que ele devia ser bicha e que ela devia esquecê-lo. Antes que chegássemos em casa eu já tinha conseguido convencê-la a ter raiva do babaca. Levei-a para dentro de casa, fechei a porta e ofereci algo pra beber. Ela quis conhaque mas eu disse que só tinha vodka. Bebemos, eu sempre servindo um copo bem grande para os dois, mas ela bebia mais rápido do que eu. Quando percebi, ela chegou perto de mim me abraçando e dizendo que eu era muito bonzinho, que eu cuidava dela e que ela sempre percebia quando eu olhava para as pernas dela, como eu a queria, eu a queria não é? Sim, eu dizia, eu queria muito. Daí em diante foi só um pulo.

Levei-a para o quarto e coloquei-a na cama, beijei a boca dela me deitando ao lado, mordi o pescoço, beijei o ventre, beijei a coxa e naquele instante me lembrei das prováveis horas da minha vida que eu passei olhando e desejando aquela coxa, cobiçando aquele corpo. Mordi-a com mais força e arranquei um naco da carne. Mordi denovo e denovo. Ela realmente era muito gostosa.

Então eu a comi. Literalmente.


Singela homenagem de um leitor a Charles Bukowski, o velho safado.

12 novembro 2009

Apenas medio elenco estable


me gusta mirar
la lluvia
que cae
por las
calles
en las tardes
de gris.


tarde o temprano
me vuelvo lejano
y quedo a pensar
se todo no pasa
de broma del
tiempo,
o se fuera feliz.

08 novembro 2009

O MONSTRO DO LAGO

Ei-la, do alto da sua cadeira almofadada, com uma régua de madeira nas mãos ela vigia a conduta da sua única aluna que termina um trabalho com lápis de cor. A professora usa os cabelos soltos, bem corridos, caídos sobre os ombros. A gravidade do seu rosto já dá indícios de um temperamento forte e do gênio voluntarioso que tem. As manchas perto da sua boca dão a entender que andou comendo chocolate recentemente... A professora é uma menina de quatro anos, que apesar da pouca idade, dirige a sua escola de uma única aluna com pulso firme. A aluna, sua prima, tem dezoito. Mas nem a grande diferença de idade impede a pequena ditadorazinha de impor a sua vontade sobre a pupila.
Cedendo à tentação a professora, usando a destra com habilidade invejável, começa também a colorir. Divide o papel com uma linha na porção inferior, desenha um retângulo fechado por um dos lados com a linha já traçada, um triângulo aproveitando a base oposta do retângulo, e assim, com traços decididos (como era de se esperar, do seu pulso firme de educadora de quatro anos de idade) termina o que pode ser visto como um prédio. Ou como uma nave espacial, tudo depende se as janelinhas são redondas ou retangulares.
Finalmente, dá uma folguinha para sua aluna e abandona a mesa da cozinha, mas não sem antes dizer um "fica comportadinha, viu?". Se dirige até o quarto do primo mais velho e o convida para brincar também. O primo a segura por debaixo do braço, levantando-a sobre a cabeça e dá um beijo na sua barriga. A professora aceita o destino com um estoicismo incrível, depois, o primo volta a professora pro chão firme e se joga na sua cama para retomar a leitura de um livro. "Brinca com a gente, Gui!" ela insiste, puxando-o pelo braço. O convence, mas seu poder de persuasão não é tanto quanto ela imagina. O primo invade a sala de aula, bagunça os lapis, belisca a aluna, que é sua irmã, morde a professora, rouba um copo com suco e um pão caseiro e retorna para o quarto. "Eu sou o Mooooonstro do LAAAAAGO", diz enquanto se serve do suco. A professora têm medo. A aluna, irritada, arruma a bagunça que o monstro do lago deixou na sala de aula. A professora então, assustada, diz que é preciso se proteger do monstro. A besta do lago ainda tem tempo de dizer um "Não se preocupa, o monstro do lago só aparece uma vez por mês!", daí bate a porta do seu quarto.
A pequena professora então conclui que o monstro do lago deve ser algum tipo de cobrador ou conta de luz. Pacientemente, retoma as atividades naquela escola instalada na cozinha de um apartamento da região metropolitana de Brasília. E a paz volta a reinar por aqueles lados.

24 outubro 2009

A última coisa que Epifânio Barreiros lembraria na hora da morte seria que esquecera de dar os vinte contos de réis que devia ao senhor Joaquim Ulhôa.

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Naquele mesmo dia, cinco horas antes morrer, Epifânio Augusto de Oliveira e Barreiros passara toda a manhã dentro do seu gabinete limpando escrupulosamente o rifle Winchester 1895, enfurnado em um dos vastos cômodos da sua casa da cidade, instalada no largo dos Faria de frente ao cemitério. O rifle teria ficado pendurado na parede do gabinete por vários anos desde o dia em que ele havia disparado contra o próprio irmão por uma disputa de terras.

Fazia uma semana desde que o primeiro aviso havia chegado alertando que o Terceiro Destacamento da Coluna Prestes avançava em direção à cidade de Sant'Ana dos Pilões. Um mascate vindo da direção de São Sebastião dos Cristais foi o primeiro a alertar para o fato do bando tomar o rumo da cidade, mas nenhum dos homens de bem deu crédito ao que o mascate dizia. Quatro dias depois o senhor Epifânio Barreiros recebeu em sua casa um negrinho que dizia ter vindo a mando de Raul Adjuto para avisar que dois homens que usavam lenços vermelhos presos no pescoço foram abatidos nos lados do rio São Marcos, e ambos estavam armados.

Epifânio Barreiros repassou a notícia ao delegado e ao senhor Joaquim Ulhôa, que então era presidente da câmara municipal, mas ambos acharam cedo demais para alertar a população. "Eles vão passar direto, Coronel" dizia Joaquim Ulhôa, "não há nada por esses lados que possa interessar a essa gente, a não ser a poeira e os pretos; mas a gente pode encontrar os dois em todo lugar". Era um homem gordo, de olhos pequenos e de um grande nariz afilado, principal herança física que transmitiria aos seus filhos - legais ou bastardos. Em verdade, o que preocupava mais o senhor Joaquim Ulhôa era outro assunto, "E quanto ao dinheiro do gado, Coronel, o senhor poderia se achegar pra jantar conosco dia desses, daí conversamos melhor".

Sant'Ana dos Pilões já fora um povo importante na época em que chamavam as Minas Gerais de província, e não de estado. Muito tempo atrás, o avô do avô do avô do senhor Epifânio Barreiros se instalara na aldeia que os bandeirantes paulistas haviam construído quando encontraram ouro nos aluviões de um córrego largo nascido em uma serra com formato de um pilão. Desde então, o seu sobrenome participou e assistiu todas as etapas da história do lugar: a emancipação febril concedida por dona Maria Louca (rainha de Portugal), a rápida ascensão do mercado do ouro na região e o êxodo que se seguiu na cidade ao fim do ouro fácil. Só ficaram na cidade aqueles que não tinham onde ir e aqueles que tinham terras por aquelas bandas.

Depois foi a guerra do Paraguay, os Barreiros enviaram para o Exército Imperial vários escravos para lutar na contenda, e inclusive o primeiro Epifânio Augusto Barreiros teria lutado na Batalha do Riachuelo, e é por esse motivo que chamavam qualquer homem da família dos Barreiros de "Coronel". A história seguiu com a libertação dos negros, a proclamação da República e outras mudanças de um cosmo maior que não afetava diretamente a realidade na cidade de Sant'Ana: continuava-se fazendo calor, as negras de ancas largas ainda lavavam roupa na prainha dos macacos e as principais famílias do lugar ainda ditavam as regras, como sempre fora e como sempre haveria de ser, com a graça do Nosso Santíssimo Senhor Jesus Cristo.

Agora, um tal de Siqueira Campos, subalterno de um outro tal Luís Carlos Prestes, que saía por aí espalhando a desordem no país com uma horda de maltrapilhos armados, ameaçavam a rotina sacramentada pelo tempo naquele lugarejo esquecido tanto pelo deus cristão quanto pelos deuses negros. Por isso os homens de bem do lugar teriam que pegar em armas mais uma vez para defender a cidade dos revoltosos. Antônio de Siqueira Campos não fazia idéia, mas a simples menção da sua chegada mudaria toda a história de uma família.

02 outubro 2009

"com deus não me deito
e nem me levanto
mas com a virgem maria
seria uma noite e tanto"
Mário Prata

12 setembro 2009

Detesto o silêncio

Não o silêncio do meu quarto, mas sim o silêncio entre duas pessoas.

Naquela noite, tínhamos ido ao teatro. Ela, como sempre, foi crítica até demais: achou a iluminação ruim e a acústica mal implementada. Eu achei legal. A atriz principal interpretava Elektra filha de Agamênon, e tinha uma voz levemente fanhosa. Coisa besta, que quase ninguém deve ter percebido (talvez pela acústica ruim), mas eu percebi. E imaginei a Elektra de verdade - se houver existido uma - sofrendo com problemas de dicção. Ri disso. Ela não entendeu o motivo do meu humor. Fechou a cara e recomeçou a criticar a iluminação.

De lá passamos num supermercado pra comprar bebida. Ela dirigia e isso sempre me deixou incomodado - o fato de depender do carro dela para saírmos. Acho que é uma das atitudes ditas provincianas que eu não conseguia largar. Mal dos homens do interior. Por isso eu fazia questão de pagar suas coisas. O ingresso do teatro, a conta do jantar e a garrafa da vodka com frutas. Poderíamos beber ali no estacionamento, mas com a lei seca os polícias de Brasília andavam rondando esses locais exatamente com a intenção de flagrar motoristas bebendo pra multá-los logo adiante; por isso fomos pro mirante. E no carro mais uma vez: silêncio.

Descemos a pista do mirante ao lado da ponte, ela estacionou no gramado onde antes havia um carrinho de cachorro quente. Descemos do carro, eu com a garrafa na mão e ela com um casaco, braços cruzados bem apertados contra o peito. Resolvi quebrar aquele gelo:

- acho que vai chover. olhei para o céu - nublado, mas sem sinal de chuva.

- acho que a gente tem que beber. ela me disse e se aproximou de mim, passando o braço pelo meu, me trazendo para perto.

Sentamos na grama e eu pelejei para abrir a garrafa. Uma, duas, três tentativas. Mais uma surra no meu ego masculino, e como de costume xinguei alguma coisa. Ela riu. E eu abri a garrafa, passei pra ela e fiquei torcendo minha mão direita. Gole curto. Careta. Gole longo.

- o lago a noite é lindo. me lembra o mar.

- é. (ela tinha me passado a garrafa)

- e se tiver greve?

- se tiver greve eu vou pra casa. que se foda o estágio.

ela torceu o nariz. eu havia comentado sobre o estágio, mas não sobre ela. sobre nós. Ficamos em silêncio mais uma vez.

- Detesto o silêncio... Esses silêncios que incomodam. Sabe como você sabe quando tem uma pessoa pra vida toda? Quando você pode ficar em silêncio com ela por quarenta minutos inteiros e não se incomodar com isso.

- isso é do Tarantino? (ela perguntou depois de eu tê-la devolvido a garrafa).

- Tarantino. Sim.

- você tá ficando bobo com esses filmes... (me devolve a garrafa sem beber).

Eu bebo. Mais pela frustração do que por vontade. Enquanto estou bebendo não tenho que falar. E agora, algum tempo depois, posso pensar direito sobre o ocorrido. Eu já tinha perdido. Ela já não queria mais.


Passei a garrafa.

Aproximei pra beijá-la - nós homens tentamos às vezes corrigir certas coisas com beijo ou sexo, algumas delas detestam isso.

Ela afastou o rosto.

- eu quero ir embora... nem me olhou quando disse.

- eu quero ficar.

olhava pro lago. e pior do que o silêncio, é o gosto da frustração. Aquela frustração que senti quando ela se levantou sem me dizer uma única palavra, entrou no carro e se foi. Mais uma vez, silêncio. Ela não estava lá, mas o silêncio entre nós havia ficado. Pelo menos restava a garrafa. Vodka e frutas vermelhas. O lago. A ponte. Bebi até os ônibus começarem a passar.

Ainda detesto aquele silêncio.

11 agosto 2009

História Curtíssima


Era a terceira atriz com quem eu havia ficado junto em menos de um ano. Não sei exatamente o que é, não procuro conscientemente esse tipo de mulher, mas pensando melhor vejo que se todas passam a vida fingindo, é melhor que eu esteja pelo menos com alguém que seja convincente. Estávamos juntos há tempo suficiente para ela conhecer minhas manias e suportar minhas ausências; era o que poderíamos chamar de relação estável: e isso me agradava incrivelmente. Tanto que cheguei a ponto de comprar uma aliança - de ouro - e queria pedi-la em noivado. A idéia do casamento não passava pela minha cabeça, com o dinheiro da bolsa do mestrado eu mal conseguia pagar as contas, eu já não vendia uma história há um bom tempo, mas já vínhamos morando juntos há dois meses e o noivado era uma das melhores formas de regularizar a situação para com a família dela, extremamente tradicionalista.

Ela iria estrear naquele dia uma peça de um filósofo francês vesgo que em meados do século XX se metera a dramaturgo; e naquele dia durante o café da manhã Carolina - esse era o seu nome - era toda "mon amour", "la colline des roses" e "Je déteste les mois de décembre". Sorria bastante e parecia animada quando eu saí de casa e a deixei recitando as suas falas e decorando as cenas, e quando lhe dei um beijo e descia as escadas fiquei sentindo o cheiro do protetor solar dela que me impregnou.

Naquela noite, sentei-me na terceira fileira e enquanto a cortina ainda estava baixa prendi minha atenção na plateia - ou na falta dela, porque poucas pessoas haviam se interessado pela peça e aquela sala de teatro no setor de autarquias norte estava realmente entregue "às moscas". Havia alguns senhores de idade espalhados pela platéia e uma única família composta provavelmente por mãe, pai e filho e o menino não parava de reclamar dizendo que preferia estar em casa. Logo as luzes se apagaram e a cortina subiu, e ainda na primeira parte pude ver Carolina ajoelhada num cenário que imitava uma ruela suja, estava se lamuriando por algo que não pude entender.

O primeiro ato foi extremamente ruim e eu esperava que a peça melhorasse nos que viriam a seguir. Ela havia atuado muitíssimo mal, porque dava pra ver que o choro era extremamente forçado assim como o falso sotaque francês e isso me deixava irritado - eu sabia que ela era melhor do que aquilo. Por isso, cheguei a conclusão de que era proposital, mas por que diabos ela estava agindo assim?

Acho que comecei a cochilar, mas não tenho certeza porque meu estômago doía tanto naquele dia que duvido que eu tenha realmente pegado no sono e um senhor idoso vestido com roupas bastante antiquadas se postou do meu lado e chamou meu nome duas vezes. Vi que ele tinha um frio sorriso com uma cortesia distante, e logo que eu parecia recuperado do atordoamento que sofremos ao sermos despertados, ele me disse para acompanhá-lo até os bastidores. Segui por trás da cortina lateral e vadeei pela penumbra, quase tropeçando em um algo coberto por um forro branco ou um lençol, parei onde me ordenaram e aquele senhor com as roupas antiquadas me deu algo envolto num pano, pedindo que eu segurasse. Fiquei assim por alguns minutos, meio que tentando acostumar os olhos com a escuridão e quando finalmente consegui, notei que estava num palco, onde haviam móveis figurando um cenário que não pude reconhecer como sendo da peça.

Repentinamente uma cortina subiu ao meu lado e as luzes fortes dos refletores fizeram meus olhos doerem, e mais uma vez demorei a me acostumar com o ambiente. O que me chamou atenção naquilo foram os aplausos, então eu me dei conta de que estava realmente num palco. Os aplausos começaram fortes e foram morrendo aos poucos, a medida que alguém irrompia uma gargalhada ao meu lado então eu pude olhar abismado para as cadeiras vazias - quem estava aplaudindo então?

Ainda confuso, notei que as gargalhadas continuaram, então pude ver que a coisa coberta que eu quase tropeçara eram duas pessoas deitadas no que parecia uma cama baixa e cobertas com um lençol branco, (...)

12 abril 2009

FOME


porque Clarice é um abismo
por falta de tato ou cismo.
que consome o que encontra

vagueia no canto a esmo.
por falta de alma nem mesmo
pode ver o que afronta

No fim veio a cocaína
e nos pulsos lâmina fina.
Não vem medo nem aflição

porque Clarice é um abismo e

até parecia que era minha aquela solidão.

01 abril 2009

A PASSARELA



"É necessário saber dissimular com as pessoas que têm vergonha de seus sentimentos; concebem um ódio repentino pela pessoa que as apanha em flagrante delito de ternura, de entusiasmo ou de nobreza como se seu santuário secreto tivesse sido violado.
Se quereis ser-lhes benéfico nesse momento, fazei-as rir ou tratai de lhes sugerir, brincando, alguma fria maldade: seu humor gela e dominan-se.
Mas enfim, a moral é dada sem que eu conte a estória...
Estivemos, certa feita, tão próximos um do outro que nada parecia entravar nossa amizade e entre nós parecia haver somente uma pequena passarela a transpor. Exatamente no momento em que ias repousar o pé, perguntei-te: 'Queres passar a vir ter comigo?', mas nessa altura não quisestes e quando insisti, calaste. Entre nós lançaram-se, a partir de então, montes e rios, tudo que separa e torna estranho um ao outro, de modo que nunca poderíamos nos juntar novamente, inda que desejássemos!
Mas quando hoje sonhas com a pequena passarela que havia, nada encontras pra dizer... só te nascem soluços e aturdimentos."




Texto retirado de A Gaia Ciência, Tópico 16, Livro I, de F. Nietzsche

27 março 2009

A HISTÓRIA EM 3 PARTES DO HOMEM

SEM ALMA.

ii -

Com o tempo, todos

na região começaram a achar estranho o comportamento de Lázaro. Evitavam passar por aquelas bandas pra não ter que olhar naqueles olhos, que com os anos escureceram, chegando a ter a cor do firmamento em uma noite sem lua. Não demorou muito pra começar a surgir alguns boatos sobre o menino da caramboleira, que falava com os animais e tentava ler a alma dos outros com seus olhos sem vida.

Certa vez, na época da Folia do Divino Espírito Santo, uma festa religiosa que acontece na época das secas nas várias comunidades da porção norte do estado de Minas Gerais, os foliões vieram da estrada que margeia a serra sem nome, erguendo na frente à bandeira do Nosso Senhor e entoando seus hinos de fé, até a cerca da casa, onde pararam gritando vivas ao Divino Espírito Santo e aos moradores da casa que iriam acolher todo o grupo naquele dia. O pai de Lázaro reuniu toda a família em frente o lugar pra rezarem ali o Pai Nosso com os outros e pedirem a bênção. No final da reza, todos ali beijaram a bandeira clamando proteção, chuva e a eterna misericórdia do senhor que perdoa todos os pecados. Depois os foliões entraram na casa humilde da família, alguns ali com certo receio, porque Lázaro estava sentado sobre a cerca observando cada um do grupo. A mãe de Lázaro ofereceu um pouco de café e leite fresco recém fervido, pra adultos e crianças; ela a essa altura já era mulher feita e depois de quatro filhos já não conservava os traços juvenis que tinha quando se casou, em seu lugar exibia uma expressão de servidão e as marcas inevitáveis daquele que sofre uma vida de privações.

Fizeram ali uma fogueira com toda a lenha que acharam disponível, e os mais velhos se puseram a conversar e a beber, deixando de lado alguns temores como se os seres humanos reunidos ali em volta de um fogo conseguissem espantar todos os medos ancestrais que tinham, que surgem sempre com a noite. Lázaro não conseguia entender essa sensação e de certa forma alimentava dentro de si certo desprezo por essas ocasiões. Via de regra o desprezo sempre recai sobre a curiosidade ávida, e como ele teve essa curiosidade pelas outras pessoas agora, alimentava a fase do desprezo. Com o adiantar da noite alguns dos foliões foram embora, enquanto outros preferiram dormir na casa, se aproveitando mais do pouco conforto que a família tinha pra oferecer. Lázaro ficou cuidando da fogueira, jogando pequenos pedaços de madeira e pano pra alimentá-la, deixando o terreiro iluminado por boa parte da noite.

Na manhã seguinte, encontraram um homem morto em um dos quartos, onde Lázaro e seus irmãos dormiam, e em meio a confusão encontraram a bandeira do Nosso Senhor queimada junto do fogo, praticamente em cinzas. O caso não foi esclarecido, porque não havia marcas de assassinato, mas a queima da bandeira foi atribuída ao rapaz, que ficara acordado além de todos os outros. As pessoas saíram da casa apavoradas, pedindo pra que deus protegesse a todos. A mãe de Lázaro chorou quando lhe disseram que o seu filho tinha parte com o diabo e o pai dele lhe dera uma surra, culpando-o por tudo que havia acontecido. Nem quando apanhou, ele conseguiu chorar, apenas olhava um ponto qualquer da casa, parecendo indiferente a tudo aquilo.

Um ano depois do ocorrido, a mãe de Lázaro morrera de um mal não identificado. Antes havia padecido na cama durante três meses, tendo febre todas as tardes. Depois da viuvez, o pai passou a beber e a descuidar do gado e os irmãos foram morar na cidade com uma tia, irmã de sua mãe. Na casa só ficou o garoto junto do pai, que a cada dia que passava frequentava menos o lugar; até chegar um momento em que não voltou mais, deixando, porém o filho para trás. As terras foram vendidas pra um fazendeiro que mudara recentemente com sua esposa pra região, trazendo-a da cidade num avião bimotor. Ele havia construído uma casa do outro lado da serra Cabavida, onde também tinha comprado terras. O fazendeiro se chamava Geraldo Ferreira e contratou Lázaro pra ajudar na lida da fazenda. Ele tinha cerca de vinte anos quando isso aconteceu; e foi assim que Lázaro Sem-Alma passou a trabalhar pro meu avô, muito antes de eu nascer.

21 março 2009

ESMURRANDO O GELO DO PEIXE



Em uma dessas noites

em que os vagabundos rondam as ruas a procura de algum pato e as putas se oferecem por um preço camarada no Setor Hoteleiro Sul, eu e alguns amigos vagueávamos pelo estacionamento do estádio a procura do carro e de algo pra fazermos, porque a noite mal havia começado e o show que acabara há pouco deixou em todos a vontade de prolongar aquela sensação o máximo possível.

Éramos ali no número de quatro: Rufão, o mais velho entre nós e dono do carro; Maru, um ex-colega de faculdade; Alma, namorada do Rufão e eu, que depois de alguns tragos já não me sentia muito deslocado ali, como eu fico quando estou cercado de muita gente - o estacionamento estava lotado de fãs que acabavam de sair do estádio.

- Então, qual vai ser? perguntou Alminha. A gente podia beber alguma coisa.. Ainda dá tempo de ir ao Pão de Açúcar pra comprar umas biritas.

- Rola de ir pra algum lugar também... Tem uma galera se reunindo agora em volta da torre de tevê. A gente podia ir pra lá depois de comprar bebida.

Como ninguém foi contra, acabamos entrando no carro e seguindo um caminho tortuoso até o mercado, talvez tivéssemos furado uns dois sinais, mas ninguém ali parecia se importar. Chegamos ao estacionamento do mercado, e encontramos alguns caras vestidos de preto, bebendo do lado de fora do carro e falando alto; diziam qualquer coisa, acho que o que importa nesses momentos é beber e falar, não importa o que. Entramos no mercado a procura da bebida, vasculhamos alguns corredores e acabamos nos decidindo por algumas latas de cerveja, que infelizmente estavam quentes.

- A gente pega o gelo do peixe, sempre rola. Disse Alminha, sorrindo e caminhando pro fundo do mercado.

Eu a acompanhei, pegando antes um saco plástico e uma cesta pra colocarmos o gelo ali. Logo começamos a cavar aquele gelo e colocá-lo no plástico, mas depois de algum tempo, as mãos já estavam queimadas e não havia quase nada no saco.

- Dá licença, eu disse, e me aproximei de um canto do suporte. Dali, comecei a esmurrar aquela camada de gelo, que apesar de grossa, não estava totalmente consolidada. Um, dois, três murros com a falange da mão direita bem fechada, e já conseguíamos fazer o trabalho render dessa vez. Seriam muitas latas de cerveja, portanto precisaríamos de muito gelo. Os caras foram se aproximando de nós, com outra cesta na mão, cheia de latinhas de alguma cerveja barata. Eu continuei e esmurrar o gelo, enquanto a Alminha recolhia e colocava dentro do plástico. No último murro, cortei a mão, que começou a sangrar de leve.

- O ego masculino é muito frágil; disse o Rufão pro Maru, olhando a cena.

- Acho que isso tudo é culpa da geologia.

Ri daquilo, mas tive uma vontade de que se calassem. Pegamos nossas coisas e acabamos não indo pra torre de tevê. Fomos parar numa festa no alojamento universitário. Localizamos o bloco, nos informamos com o porteiro e começamos a subir aqueles degraus que pareciam não acabar. Foram quatro lances de escada até chegarmos no andar certo. Não havia música, mas um cara pelado passou pelo corredor com uma cara de dopado. Fiz uma careta, meus amigos tentaram agir com naturalidade. Abrimos a porta do 202 e entramos num daqueles apartamentos sombrios da Casa dos Estudantes Universitários. Paredes cruas de concreto pintadas de um branco já encardido, uma escada em espiral que levava ao andar de cima; pois aqui os apartamentos são pequenos cubículos de dois pisos, onde moram 4 pessoas em cada, janelas de vidro que davam de frente a um gramado que separava os dois blocos.

- Boa noite! Um cara sorridente e com ar de chapado veio até nós na porta. A Alminha correu pra abraçar uma amiga lá dentro. Uma música, agora evidente, preenchia o ambiente e as pessoas dançando disfarçavam a falta de móveis do apartamento. Acho que tocava Jorge Ben, não sei dizer.

- Boa noite amiguinhos... Eu sou o Rogério. Você é? E você? E você? Ah, Maru, Rufão e Guilherme. Um... Eu só bebi três vezes na minha vida. Hoje é a terceira, sabia? Rufão, Gustavo e Maru, né? Logo se vê que essa camisa não é minha, porque eu tenho o braço todo bronzeado, tá vendo? e mostrava o braço pra nós três. Com a cerveja na mão, rimos da situação do coitado e fomos colocar as outras latas dentro da geladeira. Só aí eu percebi que minha mão fedia a peixe do gelo que eu havia quebrado a socos.

Descemos pro carro pra pegar qualquer coisa, e na volta encontramos a Alminha descendo as escadas descalça.

- Eu preciso caminhar na grama. disse e passou por nós. Demos de ombro, pensando em ir embora dali. De uma sacada falamos disso com ela, que andava na grama sozinha, lá embaixo.

- Tudo bem, mas pega a minha sandália!

Acho que nenhum de nós estava disposto a voltar ao apartamento e ouvir a conversa dos bêbados ali dentro. De bêbados já bastava a nossa intenção de estar. Acabei subindo, mais pra buscar a cerveja que tinha ficado na geladeira do que por vontade. No alto da escada me deparei com três pessoas que olharam de lado, talvez se perguntando quem eu era, e no corredor vi o tal Rogério vagueando quase pelado por ali. Eu me perguntava onde estavam as garotas, e em que merda de festa eu me metera. Entrei sorrateiro no apartamento, peguei as cervejas e a sandália da Alminha e caí fora dali.

Dentro de uma hora, o Maru e eu estávamos pegando o último ônibus pra casa. Sentei-me do lado de uma moça bonita, que usava um short indecente e uma jaqueta de couro toda fechada, mesmo naquele calor. Comecei a puxar papo, mas logo percebi que ela se esquivava de algumas perguntas, como se tentasse se proteger ou esconder algo.

- E você pega esse ônibus todos os dias de madrugada? perguntei

- Sim. Chego bem tarde em casa.

- Que merda, hein? disse, realmente compadecido.

Dei mais uma olhada nas pernas bonitas que ela tinha, tentando ser discreto, mas alcoolizado o suficiente pra ser evidente. A jaqueta de couro fechada, mesmo naquele calor, me intrigava - É puta, concluí baseado nestes fatos, embora nem sentisse compaixão por ela, ao contrário, sentia até alguma simpatia. Talvez fosse a cara de menina ou as pernas bonitas, já nem sei. Como ela se demonstrou receptiva na conversa, mas bastante esquiva, decidi dormir e pedi pra que ela me acordasse depois do viaduto. Cheguei em casa mais tarde me sentindo um pouco como Charles Bukowski, por viver aquilo tudo. Mas logo que me despi e me atirei na cama de qualquer forma, deixei pra trás o cheiro de peixe, o corte na mão direita e a puta do ônibus.

Acordei várias horas depois com alguma ressaca, mas não o suficiente pra ficar na cama. Havia deixado na noite anterior tudo o que acontecera, mas a sensação de ser miserável como Bukowski ainda não havia passado, e não passa até hoje.

Pois é, pior pra mim.

11 março 2009

A HISTÓRIA EM 3 PARTES DO HOMEM

SEM ALMA.

i -


Há muitos anos atrás,

na despensa de uma fazenda de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, nasceu uma criança diferente de todas as outras. Acontece que no exato momento em que ela nascia, estourara o primeiro conflito de uma dessas guerras que o homem faz, e na confusão do entra e sai de almas no paraíso, o santo responsável pelo embarque e desembarque das almas na terra se esqueceu de enviar uma praquele fim de mundo cercado por duas serras, uma pela frente, com o nome de Cabavida e a outra em um dos lados, essa não tinha nome.

Pois bem, sendo que ninguém percebeu o acontecido, o menino veio ao mundo sem a alma, uma das três partes das quais somos feitos (as outras são corpo e mente). Nascera um menino rechonchudo como todos os bebês, grande, com uns olhos cor-de-vidro-moído, a pele da cor da casca do tamarindo e com 3 dias de atraso. A negra que trabalhara como parteira (também trabalhava como benzedeira quando havia doentes de "sezão", verme ou tremedeira) quando aparou a cabeça do menino levou um susto ao perceber que ele nascia de olhos abertos, observando todos ao redor, como se fosse gente grande, sem chorar em nenhum instante, de tal forma que a mãe enquanto ainda passava pelo seu momento, acreditara estar parindo um filho já morto. E como para ela, o filho ressucitou alguns segundos depois de nascer, resolveu batizá-lo de Lázaro.

Os anos passaram, a mãe tivera outros filhos que choravam ao vir ao mundo, e aquela história foi esquecida, porque não havia nada de errado com o seu primogênito (eu esqueci de dizer que quando o menino nasceu, a mãe tinha 15 anos). Era um bom menino, ajudava o pai todos os dias no curral, depois apartava as vacas e passava o resto da tarde sentado debaixo de um pé de carambola à sombra do Cabavida, observando as coisas ao redor. Quando por acaso alguém passava perto de onde Lázaro estava sentado, o menino ia seguindo o passante, até conseguir mirar os olhos estatelados cor-de-vidro-moído dentro dos olhos da pessoa. Normalmente, se incomodado por um arrepio ou por puro instinto o passante abaixasse a cabeça, nem se atravia a olhar denovo pro lado da caramboleira e, via de regra, seguia o caminho fazendo no corpo o sinal da cruz.

Lázaro não tinha amigos e pouco conversava, até o dia em que depois de tocar os bezerros, sentou-se debaixo da caramboleira sem perceber que ali perto encontrava-se uma cobra-cipó que o cumprimentou com uma "boass tardess" depois de rastejar até o galho. Naquela tarde Lázaro conversou com a cobra-cipó até perto de anoitecer.

10 março 2009

Lindo é ver uma mulher espiar a lua.
Assim, de lado, cotovelos apontados pra rua,
braços nus, olhos quase apertados, sonhando
acordada com a felicidade que um dia foi sua.

Lindo é ver uma mulher espiar a lua.
E sentir em si a luz que nela atua,
como se partisse dela própria emanando
e viesse morrer em minha carne crua.

Queria que pudesse tocar meu coração,
mulher que espia a lua.
Queria ao seu lado matar a mágoa e a ambição.

E assim morrer feliz quando, sorrindo, você viesse
distraída, desolada ou completamente nua
repousar ao meu lado o corpo que me aquece.




Para Cristina, 8 de março de 2009.

31 janeiro 2009

Atendendo a pedidos,


Eis um epigrama de minha autoria, vencedor de uma disputa em salvador.
Só redondilhas maiores, ó.
Sinto-me o próprio Olavo Bilac.


"Não vivendo com Maria
Acabou meu sofrimento
Não sustento mais vadia
Nem sustento sentimento"


viram? sete sílabas poéticas. Rimas toantes. Tonicidade na 3ª e 7ª sílaba poética!
Eu sou um gênio! Um deus das quadrinhas, ó!


...


Nunca gostei de misturar engenharia com poesia.
O resultado sempre é cimento!


Lixo.