28 janeiro 2010

De Irmão Para Irmão



As coisas não podiam andar piores naquela época. Dos antigos amigos só eu continuava indo a sua casa e, de fato, era desagradável estar com ele. Até para mim, de vez em quando. Acho que nessa época o Diego não tomava banho com frequência. Passava dias sem sair do quarto e as vezes não queria ver ninguém. De todo modo o rompimento com a Alice foi o estopim para que isso acontecesse. Em parte, eu era responsável.

Visitava-o sempre depois do trabalho. Ambos morávamos em Taguatinga, ele próximo ao terminal da praça do Relógio e eu algumas quadras depois, na avenida central, de modo que, quando saía do metrô a noite, passava em frente a sua casa antes de ir pra minha. Conversávamos - ou melhor, eu falava e ele ouvia, mas nem sempre - e eu tentava quase sempre animá-lo falando que quando ele voltasse para a faculdade teria tempo de sobre para conhecer outras garotas. E também é verdade que eu não o abandonei por culpa; sim, admito que isso também aconteceu. O que eu posso dizer? Uma vez entrei em seu quarto sem bater, você vê, eu só empurrei a porta porque estava destrancada. O dia ainda não tinha acabado, mas lá dentro do quarto era quase um breu.

Chamei-o antes de dar uns passos, as vezes eu o surpreendia fazendo coisas mais íntimas, sei lá, não quero dar detalhes, mas dessa vez encontrei alguns livros espalhados pelo chão ao redor da sua cama. Quase todos os livros estavam abertos com as páginas viradas para o chão - é assim que ele marcava a sua leitura, não usava marcador de página e eu sempre ri disso porque sei que ele tem uma coleção deles desde criança. Puxei uma cadeira e peguei um livro do chão. O Livro dos Sonhos, Borges, página 78 ou 79, o conto era O Episódio do Inimigo. Compramos esse livro juntos depois de uma discussão no grupo literário sobre autores latinos. Sei que estremeci quando lembrei que foi nessa época que eu conheci a Alice, e no mesmo dia me apaixonei por ela. Naquele dia, me lembro também, quando ele a apresentou para mim, disse que era "a única garota que já o fizera voar".

- ... pro inferno, Léo.

Não tenho certeza se entendi certo o que ele havia dito. Na hora pensei ter ouvido "vai pro inferno, Léo", mas hoje penso que o tom lamurioso na voz dava a entender um "vou pro inferno, Léo". Larguei o livro sobre a cadeira e fiquei de pé. A partir daí as coisas ficam claras para mim, porque sei que essa foi nossa última conversa. Dei um suspiro longo, quase uma bufada (ele me chavama de chaleira porque eu sempre fizera esse ruído quando perdia a paciência) e olhei para o quarto em volta. Tinha um prato com uns pedaços de melão secos cheio de formigas e alguns mosquitos em volta, como se tivesse ficado ali o dia todo. No chão umas peças de roupa empurradas pra de baixo da cama e ali, no meio daquele pardieiro, uma foto de Alice sorrindo. A Alice do sorriso brilhante. Alice do sotaque gaúcho. Alice dos cabelos cheirosos, do beijo frio, da pele branca, das coxas firmes. Minha Alice. Eu não aguentaria mais, acho que você me entende, então contei a ele o que acontecia nos últimos meses entre ela e eu.

Ele se sentou na cama e por alguns instantes ficou com a cabeça apoiada nas mãos. Eu me lembro claramente disso, me lembro como se tivesse vivido esse momento agora a pouco, ou talvez seja só a impressão forte que ficou. Já não tenha certeza. O que seguiu foi que quando ele me olhou não estava chorando (como eu acreditei que estivesse), havia lucidez em seus olhos. Lucidez de mais eu acho, e nessas horas a lucidez é a própria loucura. Não me disse muita coisa, apenas disse que não queria que eu voltasse a vê-lo e que eu fosse embora dali agora, já. Eu respondi com um "sinto muito, meu irmão" e depois deixei o quarto e não voltei a casa dele.

Três ou quatro dias depois, Alice e eu soubemos que ele havia se matado. Pulou da janela do seu quarto indo cair direto na calçada. Morreu, se jogando do sétimo andar. Morreu tentando voar.

27 janeiro 2010


Os Exploradores


(foto: GREGEO-UnB, Caverna 'Cortina Sagrada', 2008)


"Três cronópios e um fama¹ se associam espeleologicamente para descobrir as fontes subterrâneas de um manancial. Próximos da boca da caverna, um cronópio desce, segurado pelos outros, levando nas costas uma mochila com seus sanduíches preferidos (de queijo). Os outros dois cronópios 'cabrestantes' o deixam descer pouco a pouco, enquanto o fama escreve em um grande caderno os detalhes da expedição. Logo chega uma primeira mensagem do cronópio: furioso porque se enganaram e colocaram sanduíches de presunto na mochila. Agita a corda e exige que o subam. Os cronópios 'cabrestantes' se consultam aflitos, o fama se ergue com toda sua terrível estatura e diz: NÃO, com tal violência que os cronópios soltam a corda e acudem a acalmá-lo. Estão nisso quando chega outra mensagem, porque o cronópio caiu justamente sobre as fontes do manancial e de lá comunica que tudo vai mal, entre injúrias e lágrimas informa que os sanduíches são todos de presunto, que por mais que procure e procure entre os sanduíches de presunto, não há um só de queijo."

Historias de cronopios y famas, Julio Cortázar.

¹ Cronópios, para o autor, são os seres mais emotivos (assim como poetas) e os Famas são os racionais, que defendem a órdem estabelecida (assim como advogados).

04 janeiro 2010

Omeoprazol, Diazepan, Insulina NPH e Regular


O que mais me irrita - e eu não estou falando do cheiro de desinfetante, da comida sem gosto, dos ladrilhos azuis ou das enfermeiras carrancudas - o que mais me irrita em hospitais é a lembrança das ocasiões em que passei a noite em um.

cloc cloc cloc cloc cloc cloc

Chega a enfermeira do turno da madrugada, anunciada pelo barulho do sapato de salto vindo do corredor (incomoda muito). Verifica os batimentos cardíacos no visor do aparelinho ligado ao dedo do paciente e, como se não confiasse no que viu, tira o pulso também. Só então ela nota que eu estou acordado, meio abandonado numa cadeira do outro lado da cama, com um livro chamado "Os Senhore do Norte" no colo sem ler, por causa da pouca (ou nenhuma) luz. A enfermeira pigarreia e cloc-cloqueia pra perto de mim,

"Quer um café?" Não, obrigado. "Eu tô evitando; gastrite, sabe?" Não queria café, queria um chá de boldo. Ou melhor, um chá de habu pra me curar da tosse e me deixar de pé, como diz na música. Queria algo amargo que me tirasse a sensação de estômago embrulhado e queria não estar ali. Queria ficar sentado com meu avô na calçada ouvindo o acordeon e, nas pausas entre uma música e outra, ouvir ele me perguntar se eu não tenho medo de onça no meio do mato.

"Ele vai dormir um pouco. Tomou omeoprazol agora" e diazepan, insulina NPH e regular também. "Pode ficar tranquilo, nenem". Apesar de eu ter dito meu nome duas vezes a enfermeira se recusava a usá-lo. Fiz uma careta, meio protegido pelo escuro. Esperei ela cloc-cloquear pra fora e resolvi dar uma volta. Levantei da cadeira pra procurar meu tênis e só ao calçá-lo percebi que estava com pés de meia diferentes, "Mais um pouco", penso eu, "e eu convenço todo mundo a me internar aqui também". Não faltava muito.

Fui lá fora cheirar ar não desinfetado e ver um pouco de cor que não fosse azul piscina. Ou azul da prússia, tanto faz o nome, o que acontece é que essas cores deprimem a gente. Voltei pouco depois, tomado de medo que ele passasse mal e eu não estivesse no quarto. Encontrei-o acordado, o que era surpresa pela quantidade de remédio que tomou, e cheguei perto da cama dele. "O sapato da enfermeira não deixa a gente dormir". Ri disso. Sentei na cadeira e puxei-a pra perto dele. "Guizim, me diz uma coisa... Você não tem medo de onça?" ele me pergunta. Hoje, vô, meu maior medo é outra coisa.