10 dezembro 2008

Durante muitas noites de angústia sonhei com aquele dia, porém quando acordei não fazia idéia de que o tal havia chegado. Era um 12 de agosto nublado, incomum para a região e eu havia completado recentemente 56 anos. Naquela exata manhã, calcei meus chinelos com certa dificuldade, depois de procurar por eles debaixo da cama. Fui do quarto ao banheiro arrastando os passos e pensando no barulho que o vizinho fizera na noite passada e que naquele dia, mais tarde, eu iria conversar com os pais dele. Preparei um pouco do café instantâneo e tomei-o sem açúcar, contrariando as instruções do médico para abandonar de vez o café e tudo aquilo que fizesse mal ao meu estômago. Verifiquei a caixa do correio e encontrei um pacote remetido pelo meu filho, onde havia um livro, um velho CD de músicas do início do século e uma foto da sua família sorridente: uma filha, um garoto, meu filho e sua esposa.
Todos demasiadamente felizes na foto de frente pro Cristo Redentor. O fotógrafo tomou o cuidado de fazer com que os dois braços da estátua aparecessem, cruzando o alto da foto de ponta a ponta, protegendo aquela pequena e frágil família sorridente. Atrás da foto havia uma dedicatória: "Para o vovô rabugento que não vem nos visitar. Feliz aniversário. Guilherme, Antônio, Lia e Estella". Achei graça pela dedicatória, mas a imagem da família do meu filho me fez meditar sobre a minha própria e aquele clima, juntamente com o café e o meu humor despertaram os diabos do meu estômago, que me espetavam sem a menor piedade. Fui até o banheiro me esforcei para vomitar o café e o mau humor, acabei por vomitar também um pouco de sangue. Lavei minha boca novamente, tomei um dos analgésicos que guardo atrás do espelho e saí do banheiro praguejando e jurando nunca mais tomar café. Peguei a foto, o livro e o CD e os joguei de qualquer jeito na estante de tal forma que o livro caiu aberto no chão. Recolhi o livro com certa curiosidade, pois só nesse instante reparei que se tratava de um diário; um antigo diário que mantive durante alguns anos da minha mocidade e que certamente havia se perdido no meio da mudança da minha ex mulher.
Sentei-me na poltrona ansioso, lendo desde a primeira página as frases soltas e os textos escritos de má vontade nos dias da minha juventude. Pensei naquele instante nos numerosos conselhos e nas várias recomendações que daria a mim mesmo enquanto jovem, sendo a primeira delas um brusco "Nunca se case!". Havia tanto a ser dito. Tantas coisas erradas das que fiz no passado poderiam ser consertadas e eu acabaria por salvar a mim mesmo do meu presente mórbido, o qual passo meus dias cortejando a morte sem nunca realmente tê-la entre meus braços. O analgésico começara a fazer efeito e os diabos do meu estômago já não me perturbavam mais. Senti meus olhos pesados e abandonei a leitura por um instante para descansar as vistas. Fechei meus olhos por um ou dois segundos, e eu lhes garanto que esse tempo não fora excedido, e quando os abri novamente vi algo que me fez sentir que o sangue deixava meu corpo: de pé do outro lado da sala com uma jaqueta jeans e um cabelo aleatório o meu eu jovem me olhava com certa malícia no rosto. Recuperei-me do susto e busquei em vão por meus óculos na estante ao lado e o silêncio foi quebrado por ele, que disse "Como é que fomos chegar a tanto?" ao mesmo passo que eu desistia de encontrar os óculos.
Sentou-se na poltrona de frente a minha e jogou o calcanhar direito por cima do joelho esquerdo, da mesma forma que eu fazia antes de ser incomodado pelas inúmeras dores e ferrugem que se unem ao homem envelhecido. "Quer beber alguma coisa? Imagino que haja muito por ser dito..." me disse logo depois de me encarar de cima a baixo, sem nenhum pudor. Achei graça de toda a situação e pensei estar drogado pelo analgésico ou talvez sonhando, mas o fato é que eu encarava naquela sala, naquela manhã nublada de um 12 de agosto, minha própria figura enquanto jovem. Sorri da sandice e sem pensar nas consequências ou nas causas, sentei-me novamente na poltrona com um ar debochado. "Realmente há muito por ser dito" disse, enfim, dando início a nossa conversa e externando aquele diálogo muitas vezes ensaiado por mim durante toda a minha vida.

03 dezembro 2008


Ser surpreendido pela decoração de natal é deprimente.


15 novembro 2008

Ustedes saben señores muy bien como es esto.


Lá fora uma chuva diluviana caía fazendo com que só os mais temerários se arriscassem a enfrentá-la. Até aquele velho cachorro de rua buscou abrigo na entrada da garagem do prédio, e olhando pela janela entreaberta ele tinha uma sensação de estarem em um abrigo seguro, sendo que o prédio de ferro e concreto não cederia um milímetro sequer por mais forte que fosse a tempestade. Distraiu-se tanto com a chuva que mal se lembrava da pessoa que estava sentada a sua frente, observando-o com certa calma desprovida de sinceridade, porque a verdade é que estava tão impaciente que mal continha seus dedos tamborilando sobre a perna. A moça acabou chamando a atenção do semi-inconsciente com um longo suspiro. "Não vai estiar tão cedo. Talvez você tenha que dormir aqui", ela disse quando percebeu que ele havia ficado constrangido pelo longo silêncio mantido entre os dois.

A sala onde estavam não demonstrava nenhum luxo, e talvez até acusasse a situação de alguém que mora sozinha há algum tempo. As paredes muito brancas não ostentavam nenhum quadro ou fotografia, só um pôster velho com o rosto de Ernesto Che Guevara. Sobre uma mesa de madeira muito nova estavam uma dúzia de livros de diversos assuntos, entre eles astrologia, história do Brasil e um livro do Michel Foucault, entre outros. A única coisa da casa que mostrava certa sobriedade naquele dia saturado de nostalgia era o rosto da própria moradora, embora ela também se vestisse de forma exótica, não muito distante da aleatoriedade do resto do apartamento. Tinha os cabelos castanhos presos num coque comum, usava um casaquinho de lã e uma saia que lhe caía até logo abaixo dos joelhos, porém ele a achou extremamente atraente daquele jeito e naquele dia; sendo que já começava a sentir os calores de uma paixão que há poucos minutos antes parecia tão morta quanto a vontade de estar ali. Quis arriscar um elogio, mas o transtorno do silêncio ainda superava a vontade de falar naquele instante. Acabou dizendo com uma expressão bastante debochada:

- Não faz mal, não é a primeira vez que eu tenho que dormir aqui.

Ela retribuiu o comentário com um sorriso cúmplice, como quem recorda de uma travessura feita em um passado não muito distante. Levantou da cadeira onde estava sentada ainda sorrindo e foi em direção a cozinha, murmurando algo sobre fazer um chá para os dois. Ele se levantou ainda sem dizer nada, pegou um dos livros sobre a mesa e começou a passar os olhos sobre uma página qualquer, enquanto pensava sobre o que fazer naquela situação totalmente imposta pelo destino. Viera ao encontro dela exatamente para confessar que já não tinha vontade alguma de estar junto dela e que ela devia se sentir livre do senso de dever que tinha para com ele. A coisa foi totalmente o contrário: assim que chegou ao apartamento junto com os anúncios do dilúvio tentou evitar o assunto diretamente, dando rodeios e comentado sobre alguns amigos em comum que tinham. Agora ele estava ali, sentindo-se a vontade para mais uma tentativa. Com um pequeno gosto de auto-repreensão na boca por estar sujeito a possibilidade de só estar cedendo por pura luxúria. Quando conseguiu sufocar aquele empecilho, deixou o livro aberto sobre a mesa e foi até a pequena cozinha do apartamento com passo firme e a abraçou por trás, envolvendo seus braços pela cintura dela.

Duas horas depois, quando ela jazia adormecida ao seu lado ele se sentia o mais miserável entre os miseráveis. Ela dormira agarrada a um de seus braços, como uma criança que procura por segurança e a ausência de carinho que ele sentia naquele instante rasgava suas entranhas por dentro. A voz da culpa, aquela mesma que anunciava a luxúria algumas horas antes o castigava e o impedia de olhar para o rosto adormecido dela. Devagar e sem fazer barulho, soltou seu braço, se levantou, vestiu suas roupas ainda sem olhar para a moça nua que ainda dormia, forçando-se a encarar a tempestade pelo vidro da janela. Apanhou uma caneta e escreveu na contracapa do livro de Foucault (que fora um presente dele): "Eu não te amo. Me perdoe. Vá encontrar alguém que te mereça e não me procure mais." e depois deixou-o aberto ao lado da cama.

Saiu do prédio encolhido, olhando para o céu que não cederia naquele instante, nem no dia seguinte, enquanto verificava se não esquecera nada. Caminhou até a saída da garagem onde o cachorro ainda estava abrigado e naquele instante se sentiu mais desaventurado do que o animal: tinha consigo a certeza de que nunca amara ninguém. De que ele, ou as pessoas como um todo, buscavam por uma ilusão fugaz e que o mundo viveria bem melhor sem amor. Que aquela moça que dormia num quarto de apartamento do segundo andar viveria bem melhor se nunca tivesse acreditado que o amava. Tomou coragem e enfrentou a chuva naquele dia molhou toda a sua alma.

13 setembro 2008

passagem breve pela vida
haikai. chegou e foi em seguida
estrela que cai.

24 agosto 2008



Episódio do Inimigo

" Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão-somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tantoanômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem despencasse dali; porém, deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deveriam ser quatro horas da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:

- A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmos - disse - porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele favia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Apontava-me algo, e senti que era um revólver.
Disse-me, então, com sua voz firme:

- Para entrar na sua casa, recorri à sua compaixão. Tenho-o agora a minha mercê, e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte, e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:

- É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.

- Precisamente porque já não sou aquela criança - replicou - é que tenho que matá-lo. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.

- Posso fazer uma coisa - respondi.

- Qual?

- Acordar.

E assim o fiz. "


Jorge Luís Borges, O Livro dos Sonhos.

21 agosto 2008

Madrugada, 21 de agosto.
Ausência completa do sono. In Sônia.
Gritaria, choro. Colo, café.
Estática espiritual e sentimental.
Eu deveria ser menos ríspido. Não deveria ser tão irônico.
Eu deveria demonstrar mais carinho. Não deveria me fechar tanto.
Eu deveria decidir minha vida. Não deveria depender de decisões alheias.
Eu deveria... Deveria.
Fico devendo. Na próxima vida eu pago.
Quando se escuta uma música repetidamente e ela parece ser tocada mais lentamente a cada vez, ou alguém lhe está pregando uma peça ou você está bêbado.
Nothing is real.
A vontade de tomar as rédeas da própria vida é algo natural do ser humano.
Guiar os cavalos do tempo pra direção que lhe parecer conveniente.
Acontece que mesmo assim, quem dita pra onde vamos é a própria estrada.
'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
Você não guia os cavalos de um carrossel.
O carrossel gira gira e nunca te leva a lugar algum.
Não gosto do carrossel. Andei poucas vezes na vida.
Gosto da Roda Gigante. Também não te leva a lugar algum, mas lá pelo menos é alto. A solidão que se sente contemplando o mundo de cima, míseros metros acima, é algo fantástico. Depois gira, gira, você desce e fica se lembrando da sensação. Pode ter subido só uma vez na vida, você nunca esquece. Nunca.
Meia noite e meia. Sem café.
Let me take you down 'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
Certas coisas que nos fizeram marcam o resto de nossa vida.
Certas coisas que fizemos marcam o resto da vida de outros.
Tipo aquele amigo que bebeu pra comemorar o aniversário de outro, dirigiu e bateu o carro. Todos morreram. Juntos e bêbados. Eram tão novos.
Houve congestionamento. Pessoas chegaram tarde em casa.
Praguejaram contra os malditos imprudentes. Imprudentes malditos. Cidade maldita.
Se ao menos não tivessem bebido. Todos chegariam cedo em casa. Haveria música. Alegria.
Let me take you down 'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
O café e a gastrite são amantes pontuais. Se quiser se encontrar com ela arranje um pouco dele.
Prepare-o bem forte. Bem quente. Sem açúcar. Beba em longas sorvidas.
Aquece sua alma, alerta sua mente e acorda seu corpo.
E você tem que se apresentar pro seu chefe amanhã.
E também para uma turma de quarenta estranhos. Quarenta estranhos olhando pra você.
"Ele tem o cabelo bagunçado. Barba por fazer. Olheiras enormes. Espinhas no rosto. Não é muito mais velho do que eu".
Mas só a clareza de mente pode te mostrar que é tudo besteira.
Idade, verdade, realidade.
Tudo uma grande besteira. Inclusive esse texto.
Irreal do início ao fim. Uma grande mentira. Uma mentira bem longa contada pra seduzir o sono.
Eis que chegou. Bem vindo, amigo. Estava a sua espera.
Strawberry fields forever
Strawberry fields forever
Strawberry fields forever

20 agosto 2008








Let me take you down


because i'm going to


strawberry fields


Nothing is real


strawberry fields forever.




Living is easy with eyes closed


Misunderstanding all you see


it´s getting hard to be someone


But it all works out


it doesn't matter much to me




No one I think is in my tree


I mean it must be high or low


That I you can't you know tune in


but it's all right


That is I think it's not too bad




Always, no, sometimes, think it's me


But you know I know when it's a dream


I think, no I mean.


But it's all so wrong


That is I think I disagree





17 agosto 2008

Que angústia! Que vontade louca de chorar!
Vontade frequente. Vem me visitar ultimamente.
No ônibus de volta pra casa, a noite contemplando o firmamento, deitado pensando nas mesmas coisas que pensava há alguns meses.Fiquei anos sem chorar. Sem sentir a mínima vontade. Era uma pedra. Sólido e firme. Por dentro e por fora. Hoje de manhã senti como se a minha antiga firmeza interior tivesse se transformado em algo etéreo. Como se tivesse a consistência de um vinho. Talvez tenha anteriormente ficado flácida, amolecendo aos poucos. Talvez a carne também tenha deixado de ser rija. E me vejo velho. Velho e perplexo de frente a um espelho.Como um velho prédio que há tempos não é reformado. Caio aos poucos. Telhado, acabamento, reboco. Tudo cai.
Besteira. Não estou velho. Não externamente. Ainda vou demorar uns anos pra envelhecer de verdade, e talvez até morra jovem e nunca venha a contemplar a velhice. Mas estou vivo. Hoje estou vivo. Sei disso porque sinto dentro de mim uma vontade constante de chorar que vem me visitar quando estou sozinho olhando o firmamento. E é essa vontade, minha companheira, que hoje faz com que eu vomite essas palavras sem pensar exatamente nos seus efeitos.
Me sinto pedra denovo. Me sinto firme por dentro. Mato lentamente a minha companheira, como se brincasse com ela. Como se a sufocasse com minhas duas mãos, e esse ato trouxesse de volta a antiga firmeza da minha carne e do meu espírito. Dou um longo suspiro, aliviado.
Acabou.

15 agosto 2008

Collor está preocupado com o País.
.
JORNAL DO SENADO
ANO XIV - Nº 2.859 - Brasília, quinta feira,
14 de agosto de 2008

página 8

Trecho da matéria:
"Collor: crise boliviana pode prejudicar o Brasil"


"(...)
O senador FERNANDO COLLOR (PTB- Al) disse estar preocupado com o arco de instabilidade que cerca o Brasil na América do Sul, e ainda com a manipulada disseminação de sentimentos antibrasileiros na região. "


Fernando Collor de Mello. Senador. Ex presidente da república
O primeiro presidente da república eleito por votos diretos após mais de vinte anos de ditadura militar no país. Presidente esse que teve seus direitos políticos cassados por oito anos. Hoje, senador da república pelo estado de Alagoas.
O Mandato de Senador dura oito anos.

Me lembro do Collor, eu era criancinha.
Ele aparecia na TV com um terno, um penteado bonito e falava muito.
Falava pro povo que tudo ficaria bem.
Era um cara carismático. Novo demais pra um presidente da república.

Depois me lembro de outro período. Todo mundo falava mal do Collor. Meu pai indignado com ele por algum motivo. Meu pai indignado com o presidente jovem, antagonista da velhice reumática do Figueiredo, ou do Castello Branco. Encarnação do futuro do país. Um cabelo legal, roupas caras e um sorriso branco, descarado. O presidente que reverberou confiança em todo um povo.


Povo besta. Confia em qualquer um.
Os cofres públicos pagam até hoje parte dos rombos que a gestão Collor deixou no país.
Flagraram pessoas da cúpula do então presidente em uma festa particular que acontecia num apartamento em Nova Iorque, comprado com dinheiro do povo.

Hoje Collor é senador. E diz estar preocupado.
Com qualquer coisa. Pode ser ignorância. Pode ser falta de conhecimento de causa. Mas não confiaria no Fernando Collor nem pra administrar a caixa registradora do Centro Acadêmico do meu curso. É um instinto que me deixa com uma pulga atrás da orelha.

Concluindo precocemente meu raciocínio, certa vez me disseram que o povo tem o governante que merece. E o governante gera o povo que precisa.

Faço parte do povo, portanto também tenho o que mereço.

10 agosto 2008

I'm a Believer.

Era um anfiteatro grande, como um daqueles que ele conhecera na faculdade. As únicas diferenças eram que ao invés de um quadro negro havia um palco, e ao invés de um velho estrangeiro ministrando uma aula imersa numa das tramas do sono, ele mesmo tomava parte de um grupo de músicos que se apresentavam para uma turma não muito entusiasmada.

Era uma situação embaraçosa, ele não fazia a mínima idéia de como havia parado ali e agora se encontrava com um contra-baixo nas mãos, tocando melodias que não conhecia e que mesmo sendo executadas na hora não lhe davam prazer. Que sensação incômoda! Fazer algo que não gosta por um motivo que desconhece! Mas um estranho senso de responsabilidade esperneava dentro de suas entranhas, dando-lhe calma suficiente para não abandonar tudo, justamente como acontece com quem espera sentado pelo trágico fim. Nesse instante ela entrou na sala.

Tinha os cabelos soltos caidos pelos ombros e segurava firme alguns livros contra o corpo, envolvendo-os com os dois braços. Caminhou até onde pudesse ser vista e ficou de pé em frente ao palco, olhando fixamente para ele. Aquele olhar fez com que todo o corpo dele estremecesse, por dentro e por fora, e ele não conseguiu mais tirar os olhos dela. Errava as notas sem nem ao menos se importar, continuava tocando apenas pelo já dito senso de responsabilidade. Mas aqueles olhos... Não era paixão que estava transmitida. Era uma pontinha de dor. Era também uma pontinha de satisfação por estarem se vendo ali e ao mesmo tempo era a forma que ela conseguira pra lhe contar tudo que desejeva contar sem precisar realmente das palavras.
Aquela situação durou um pouco mais de dois minutos, talvez, e então ela desviou os olhos e saiu pela mesma porta que entrara. Ele sentiu um enorme desespero com tudo isso, e sua ansiedade o impedia até mesmo de se manter de pé. O peso do instrumento aumentava a cada instante que se passava e depois de mais algum tempo, quando tocaram o último acorde ele soltou o baixo e saltou do palco, refazendo os passos da moça até a porta. Lá dera de cara com um grande corredor muito bem iluminado, porém vazio.

...

Acordou no banco de trás de um carro numa rodovia que conhecia muito bem. Seu rosto estava pressionado contra o vidro e o sol do meio da tarde deixara sua pele ardendo. Uma música dos Monkees tocava naquele instante, I'm a Believer. Era a segunda vez que ele tinha aquele sonho e agora sentia-se como saindo de um conto do Jorge Luis Borges. Ele a perdera. Pela segunda vez.