24 agosto 2008



Episódio do Inimigo

" Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão-somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tantoanômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem despencasse dali; porém, deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deveriam ser quatro horas da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:

- A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmos - disse - porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele favia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Apontava-me algo, e senti que era um revólver.
Disse-me, então, com sua voz firme:

- Para entrar na sua casa, recorri à sua compaixão. Tenho-o agora a minha mercê, e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte, e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:

- É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.

- Precisamente porque já não sou aquela criança - replicou - é que tenho que matá-lo. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.

- Posso fazer uma coisa - respondi.

- Qual?

- Acordar.

E assim o fiz. "


Jorge Luís Borges, O Livro dos Sonhos.

21 agosto 2008

Madrugada, 21 de agosto.
Ausência completa do sono. In Sônia.
Gritaria, choro. Colo, café.
Estática espiritual e sentimental.
Eu deveria ser menos ríspido. Não deveria ser tão irônico.
Eu deveria demonstrar mais carinho. Não deveria me fechar tanto.
Eu deveria decidir minha vida. Não deveria depender de decisões alheias.
Eu deveria... Deveria.
Fico devendo. Na próxima vida eu pago.
Quando se escuta uma música repetidamente e ela parece ser tocada mais lentamente a cada vez, ou alguém lhe está pregando uma peça ou você está bêbado.
Nothing is real.
A vontade de tomar as rédeas da própria vida é algo natural do ser humano.
Guiar os cavalos do tempo pra direção que lhe parecer conveniente.
Acontece que mesmo assim, quem dita pra onde vamos é a própria estrada.
'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
Você não guia os cavalos de um carrossel.
O carrossel gira gira e nunca te leva a lugar algum.
Não gosto do carrossel. Andei poucas vezes na vida.
Gosto da Roda Gigante. Também não te leva a lugar algum, mas lá pelo menos é alto. A solidão que se sente contemplando o mundo de cima, míseros metros acima, é algo fantástico. Depois gira, gira, você desce e fica se lembrando da sensação. Pode ter subido só uma vez na vida, você nunca esquece. Nunca.
Meia noite e meia. Sem café.
Let me take you down 'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
Certas coisas que nos fizeram marcam o resto de nossa vida.
Certas coisas que fizemos marcam o resto da vida de outros.
Tipo aquele amigo que bebeu pra comemorar o aniversário de outro, dirigiu e bateu o carro. Todos morreram. Juntos e bêbados. Eram tão novos.
Houve congestionamento. Pessoas chegaram tarde em casa.
Praguejaram contra os malditos imprudentes. Imprudentes malditos. Cidade maldita.
Se ao menos não tivessem bebido. Todos chegariam cedo em casa. Haveria música. Alegria.
Let me take you down 'cause i'm going to strawberry fields. nothing is real.
O café e a gastrite são amantes pontuais. Se quiser se encontrar com ela arranje um pouco dele.
Prepare-o bem forte. Bem quente. Sem açúcar. Beba em longas sorvidas.
Aquece sua alma, alerta sua mente e acorda seu corpo.
E você tem que se apresentar pro seu chefe amanhã.
E também para uma turma de quarenta estranhos. Quarenta estranhos olhando pra você.
"Ele tem o cabelo bagunçado. Barba por fazer. Olheiras enormes. Espinhas no rosto. Não é muito mais velho do que eu".
Mas só a clareza de mente pode te mostrar que é tudo besteira.
Idade, verdade, realidade.
Tudo uma grande besteira. Inclusive esse texto.
Irreal do início ao fim. Uma grande mentira. Uma mentira bem longa contada pra seduzir o sono.
Eis que chegou. Bem vindo, amigo. Estava a sua espera.
Strawberry fields forever
Strawberry fields forever
Strawberry fields forever

20 agosto 2008








Let me take you down


because i'm going to


strawberry fields


Nothing is real


strawberry fields forever.




Living is easy with eyes closed


Misunderstanding all you see


it´s getting hard to be someone


But it all works out


it doesn't matter much to me




No one I think is in my tree


I mean it must be high or low


That I you can't you know tune in


but it's all right


That is I think it's not too bad




Always, no, sometimes, think it's me


But you know I know when it's a dream


I think, no I mean.


But it's all so wrong


That is I think I disagree





17 agosto 2008

Que angústia! Que vontade louca de chorar!
Vontade frequente. Vem me visitar ultimamente.
No ônibus de volta pra casa, a noite contemplando o firmamento, deitado pensando nas mesmas coisas que pensava há alguns meses.Fiquei anos sem chorar. Sem sentir a mínima vontade. Era uma pedra. Sólido e firme. Por dentro e por fora. Hoje de manhã senti como se a minha antiga firmeza interior tivesse se transformado em algo etéreo. Como se tivesse a consistência de um vinho. Talvez tenha anteriormente ficado flácida, amolecendo aos poucos. Talvez a carne também tenha deixado de ser rija. E me vejo velho. Velho e perplexo de frente a um espelho.Como um velho prédio que há tempos não é reformado. Caio aos poucos. Telhado, acabamento, reboco. Tudo cai.
Besteira. Não estou velho. Não externamente. Ainda vou demorar uns anos pra envelhecer de verdade, e talvez até morra jovem e nunca venha a contemplar a velhice. Mas estou vivo. Hoje estou vivo. Sei disso porque sinto dentro de mim uma vontade constante de chorar que vem me visitar quando estou sozinho olhando o firmamento. E é essa vontade, minha companheira, que hoje faz com que eu vomite essas palavras sem pensar exatamente nos seus efeitos.
Me sinto pedra denovo. Me sinto firme por dentro. Mato lentamente a minha companheira, como se brincasse com ela. Como se a sufocasse com minhas duas mãos, e esse ato trouxesse de volta a antiga firmeza da minha carne e do meu espírito. Dou um longo suspiro, aliviado.
Acabou.

15 agosto 2008

Collor está preocupado com o País.
.
JORNAL DO SENADO
ANO XIV - Nº 2.859 - Brasília, quinta feira,
14 de agosto de 2008

página 8

Trecho da matéria:
"Collor: crise boliviana pode prejudicar o Brasil"


"(...)
O senador FERNANDO COLLOR (PTB- Al) disse estar preocupado com o arco de instabilidade que cerca o Brasil na América do Sul, e ainda com a manipulada disseminação de sentimentos antibrasileiros na região. "


Fernando Collor de Mello. Senador. Ex presidente da república
O primeiro presidente da república eleito por votos diretos após mais de vinte anos de ditadura militar no país. Presidente esse que teve seus direitos políticos cassados por oito anos. Hoje, senador da república pelo estado de Alagoas.
O Mandato de Senador dura oito anos.

Me lembro do Collor, eu era criancinha.
Ele aparecia na TV com um terno, um penteado bonito e falava muito.
Falava pro povo que tudo ficaria bem.
Era um cara carismático. Novo demais pra um presidente da república.

Depois me lembro de outro período. Todo mundo falava mal do Collor. Meu pai indignado com ele por algum motivo. Meu pai indignado com o presidente jovem, antagonista da velhice reumática do Figueiredo, ou do Castello Branco. Encarnação do futuro do país. Um cabelo legal, roupas caras e um sorriso branco, descarado. O presidente que reverberou confiança em todo um povo.


Povo besta. Confia em qualquer um.
Os cofres públicos pagam até hoje parte dos rombos que a gestão Collor deixou no país.
Flagraram pessoas da cúpula do então presidente em uma festa particular que acontecia num apartamento em Nova Iorque, comprado com dinheiro do povo.

Hoje Collor é senador. E diz estar preocupado.
Com qualquer coisa. Pode ser ignorância. Pode ser falta de conhecimento de causa. Mas não confiaria no Fernando Collor nem pra administrar a caixa registradora do Centro Acadêmico do meu curso. É um instinto que me deixa com uma pulga atrás da orelha.

Concluindo precocemente meu raciocínio, certa vez me disseram que o povo tem o governante que merece. E o governante gera o povo que precisa.

Faço parte do povo, portanto também tenho o que mereço.

10 agosto 2008

I'm a Believer.

Era um anfiteatro grande, como um daqueles que ele conhecera na faculdade. As únicas diferenças eram que ao invés de um quadro negro havia um palco, e ao invés de um velho estrangeiro ministrando uma aula imersa numa das tramas do sono, ele mesmo tomava parte de um grupo de músicos que se apresentavam para uma turma não muito entusiasmada.

Era uma situação embaraçosa, ele não fazia a mínima idéia de como havia parado ali e agora se encontrava com um contra-baixo nas mãos, tocando melodias que não conhecia e que mesmo sendo executadas na hora não lhe davam prazer. Que sensação incômoda! Fazer algo que não gosta por um motivo que desconhece! Mas um estranho senso de responsabilidade esperneava dentro de suas entranhas, dando-lhe calma suficiente para não abandonar tudo, justamente como acontece com quem espera sentado pelo trágico fim. Nesse instante ela entrou na sala.

Tinha os cabelos soltos caidos pelos ombros e segurava firme alguns livros contra o corpo, envolvendo-os com os dois braços. Caminhou até onde pudesse ser vista e ficou de pé em frente ao palco, olhando fixamente para ele. Aquele olhar fez com que todo o corpo dele estremecesse, por dentro e por fora, e ele não conseguiu mais tirar os olhos dela. Errava as notas sem nem ao menos se importar, continuava tocando apenas pelo já dito senso de responsabilidade. Mas aqueles olhos... Não era paixão que estava transmitida. Era uma pontinha de dor. Era também uma pontinha de satisfação por estarem se vendo ali e ao mesmo tempo era a forma que ela conseguira pra lhe contar tudo que desejeva contar sem precisar realmente das palavras.
Aquela situação durou um pouco mais de dois minutos, talvez, e então ela desviou os olhos e saiu pela mesma porta que entrara. Ele sentiu um enorme desespero com tudo isso, e sua ansiedade o impedia até mesmo de se manter de pé. O peso do instrumento aumentava a cada instante que se passava e depois de mais algum tempo, quando tocaram o último acorde ele soltou o baixo e saltou do palco, refazendo os passos da moça até a porta. Lá dera de cara com um grande corredor muito bem iluminado, porém vazio.

...

Acordou no banco de trás de um carro numa rodovia que conhecia muito bem. Seu rosto estava pressionado contra o vidro e o sol do meio da tarde deixara sua pele ardendo. Uma música dos Monkees tocava naquele instante, I'm a Believer. Era a segunda vez que ele tinha aquele sonho e agora sentia-se como saindo de um conto do Jorge Luis Borges. Ele a perdera. Pela segunda vez.