10 dezembro 2008
03 dezembro 2008
15 novembro 2008
Lá fora uma chuva diluviana caía fazendo com que só os mais temerários se arriscassem a enfrentá-la. Até aquele velho cachorro de rua buscou abrigo na entrada da garagem do prédio, e olhando pela janela entreaberta ele tinha uma sensação de estarem em um abrigo seguro, sendo que o prédio de ferro e concreto não cederia um milímetro sequer por mais forte que fosse a tempestade. Distraiu-se tanto com a chuva que mal se lembrava da pessoa que estava sentada a sua frente, observando-o com certa calma desprovida de sinceridade, porque a verdade é que estava tão impaciente que mal continha seus dedos tamborilando sobre a perna. A moça acabou chamando a atenção do semi-inconsciente com um longo suspiro. "Não vai estiar tão cedo. Talvez você tenha que dormir aqui", ela disse quando percebeu que ele havia ficado constrangido pelo longo silêncio mantido entre os dois.
A sala onde estavam não demonstrava nenhum luxo, e talvez até acusasse a situação de alguém que mora sozinha há algum tempo. As paredes muito brancas não ostentavam nenhum quadro ou fotografia, só um pôster velho com o rosto de Ernesto Che Guevara. Sobre uma mesa de madeira muito nova estavam uma dúzia de livros de diversos assuntos, entre eles astrologia, história do Brasil e um livro do Michel Foucault, entre outros. A única coisa da casa que mostrava certa sobriedade naquele dia saturado de nostalgia era o rosto da própria moradora, embora ela também se vestisse de forma exótica, não muito distante da aleatoriedade do resto do apartamento. Tinha os cabelos castanhos presos num coque comum, usava um casaquinho de lã e uma saia que lhe caía até logo abaixo dos joelhos, porém ele a achou extremamente atraente daquele jeito e naquele dia; sendo que já começava a sentir os calores de uma paixão que há poucos minutos antes parecia tão morta quanto a vontade de estar ali. Quis arriscar um elogio, mas o transtorno do silêncio ainda superava a vontade de falar naquele instante. Acabou dizendo com uma expressão bastante debochada:
- Não faz mal, não é a primeira vez que eu tenho que dormir aqui.
Ela retribuiu o comentário com um sorriso cúmplice, como quem recorda de uma travessura feita em um passado não muito distante. Levantou da cadeira onde estava sentada ainda sorrindo e foi em direção a cozinha, murmurando algo sobre fazer um chá para os dois. Ele se levantou ainda sem dizer nada, pegou um dos livros sobre a mesa e começou a passar os olhos sobre uma página qualquer, enquanto pensava sobre o que fazer naquela situação totalmente imposta pelo destino. Viera ao encontro dela exatamente para confessar que já não tinha vontade alguma de estar junto dela e que ela devia se sentir livre do senso de dever que tinha para com ele. A coisa foi totalmente o contrário: assim que chegou ao apartamento junto com os anúncios do dilúvio tentou evitar o assunto diretamente, dando rodeios e comentado sobre alguns amigos em comum que tinham. Agora ele estava ali, sentindo-se a vontade para mais uma tentativa. Com um pequeno gosto de auto-repreensão na boca por estar sujeito a possibilidade de só estar cedendo por pura luxúria. Quando conseguiu sufocar aquele empecilho, deixou o livro aberto sobre a mesa e foi até a pequena cozinha do apartamento com passo firme e a abraçou por trás, envolvendo seus braços pela cintura dela.
Duas horas depois, quando ela jazia adormecida ao seu lado ele se sentia o mais miserável entre os miseráveis. Ela dormira agarrada a um de seus braços, como uma criança que procura por segurança e a ausência de carinho que ele sentia naquele instante rasgava suas entranhas por dentro. A voz da culpa, aquela mesma que anunciava a luxúria algumas horas antes o castigava e o impedia de olhar para o rosto adormecido dela. Devagar e sem fazer barulho, soltou seu braço, se levantou, vestiu suas roupas ainda sem olhar para a moça nua que ainda dormia, forçando-se a encarar a tempestade pelo vidro da janela. Apanhou uma caneta e escreveu na contracapa do livro de Foucault (que fora um presente dele): "Eu não te amo. Me perdoe. Vá encontrar alguém que te mereça e não me procure mais." e depois deixou-o aberto ao lado da cama.
Saiu do prédio encolhido, olhando para o céu que não cederia naquele instante, nem no dia seguinte, enquanto verificava se não esquecera nada. Caminhou até a saída da garagem onde o cachorro ainda estava abrigado e naquele instante se sentiu mais desaventurado do que o animal: tinha consigo a certeza de que nunca amara ninguém. De que ele, ou as pessoas como um todo, buscavam por uma ilusão fugaz e que o mundo viveria bem melhor sem amor. Que aquela moça que dormia num quarto de apartamento do segundo andar viveria bem melhor se nunca tivesse acreditado que o amava. Tomou coragem e enfrentou a chuva naquele dia molhou toda a sua alma.
24 agosto 2008

" Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão-somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tantoanômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem despencasse dali; porém, deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deveriam ser quatro horas da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:
- A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmos - disse - porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.
Enquanto eu falava, ele favia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Apontava-me algo, e senti que era um revólver.
Disse-me, então, com sua voz firme:
- Para entrar na sua casa, recorri à sua compaixão. Tenho-o agora a minha mercê, e não sou misericordioso.
Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte, e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:
- É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.
- Precisamente porque já não sou aquela criança - replicou - é que tenho que matá-lo. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.
- Posso fazer uma coisa - respondi.
- Qual?
- Acordar.
E assim o fiz. "
Jorge Luís Borges, O Livro dos Sonhos.
21 agosto 2008
Acontece que mesmo assim, quem dita pra onde vamos é a própria estrada.
20 agosto 2008
17 agosto 2008
15 agosto 2008
página 8
Fernando Collor de Mello. Senador. Ex presidente da república
O primeiro presidente da república eleito por votos diretos após mais de vinte anos de ditadura militar no país. Presidente esse que teve seus direitos políticos cassados por oito anos. Hoje, senador da república pelo estado de Alagoas.
O Mandato de Senador dura oito anos.
Me lembro do Collor, eu era criancinha.
Ele aparecia na TV com um terno, um penteado bonito e falava muito.
Falava pro povo que tudo ficaria bem.
Era um cara carismático. Novo demais pra um presidente da república.
Depois me lembro de outro período. Todo mundo falava mal do Collor. Meu pai indignado com ele por algum motivo. Meu pai indignado com o presidente jovem, antagonista da velhice reumática do Figueiredo, ou do Castello Branco. Encarnação do futuro do país. Um cabelo legal, roupas caras e um sorriso branco, descarado. O presidente que reverberou confiança em todo um povo.
Povo besta. Confia em qualquer um.
Os cofres públicos pagam até hoje parte dos rombos que a gestão Collor deixou no país.
Flagraram pessoas da cúpula do então presidente em uma festa particular que acontecia num apartamento em Nova Iorque, comprado com dinheiro do povo.
Hoje Collor é senador. E diz estar preocupado.
Com qualquer coisa. Pode ser ignorância. Pode ser falta de conhecimento de causa. Mas não confiaria no Fernando Collor nem pra administrar a caixa registradora do Centro Acadêmico do meu curso. É um instinto que me deixa com uma pulga atrás da orelha.
Concluindo precocemente meu raciocínio, certa vez me disseram que o povo tem o governante que merece. E o governante gera o povo que precisa.
Faço parte do povo, portanto também tenho o que mereço.
10 agosto 2008
I'm a Believer.
Era uma situação embaraçosa, ele não fazia a mínima idéia de como havia parado ali e agora se encontrava com um contra-baixo nas mãos, tocando melodias que não conhecia e que mesmo sendo executadas na hora não lhe davam prazer. Que sensação incômoda! Fazer algo que não gosta por um motivo que desconhece! Mas um estranho senso de responsabilidade esperneava dentro de suas entranhas, dando-lhe calma suficiente para não abandonar tudo, justamente como acontece com quem espera sentado pelo trágico fim. Nesse instante ela entrou na sala.
Tinha os cabelos soltos caidos pelos ombros e segurava firme alguns livros contra o corpo, envolvendo-os com os dois braços. Caminhou até onde pudesse ser vista e ficou de pé em frente ao palco, olhando fixamente para ele. Aquele olhar fez com que todo o corpo dele estremecesse, por dentro e por fora, e ele não conseguiu mais tirar os olhos dela. Errava as notas sem nem ao menos se importar, continuava tocando apenas pelo já dito senso de responsabilidade. Mas aqueles olhos... Não era paixão que estava transmitida. Era uma pontinha de dor. Era também uma pontinha de satisfação por estarem se vendo ali e ao mesmo tempo era a forma que ela conseguira pra lhe contar tudo que desejeva contar sem precisar realmente das palavras.
Aquela situação durou um pouco mais de dois minutos, talvez, e então ela desviou os olhos e saiu pela mesma porta que entrara. Ele sentiu um enorme desespero com tudo isso, e sua ansiedade o impedia até mesmo de se manter de pé. O peso do instrumento aumentava a cada instante que se passava e depois de mais algum tempo, quando tocaram o último acorde ele soltou o baixo e saltou do palco, refazendo os passos da moça até a porta. Lá dera de cara com um grande corredor muito bem iluminado, porém vazio.
...
Acordou no banco de trás de um carro numa rodovia que conhecia muito bem. Seu rosto estava pressionado contra o vidro e o sol do meio da tarde deixara sua pele ardendo. Uma música dos Monkees tocava naquele instante, I'm a Believer. Era a segunda vez que ele tinha aquele sonho e agora sentia-se como saindo de um conto do Jorge Luis Borges. Ele a perdera. Pela segunda vez.