24 outubro 2009

A última coisa que Epifânio Barreiros lembraria na hora da morte seria que esquecera de dar os vinte contos de réis que devia ao senhor Joaquim Ulhôa.

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Naquele mesmo dia, cinco horas antes morrer, Epifânio Augusto de Oliveira e Barreiros passara toda a manhã dentro do seu gabinete limpando escrupulosamente o rifle Winchester 1895, enfurnado em um dos vastos cômodos da sua casa da cidade, instalada no largo dos Faria de frente ao cemitério. O rifle teria ficado pendurado na parede do gabinete por vários anos desde o dia em que ele havia disparado contra o próprio irmão por uma disputa de terras.

Fazia uma semana desde que o primeiro aviso havia chegado alertando que o Terceiro Destacamento da Coluna Prestes avançava em direção à cidade de Sant'Ana dos Pilões. Um mascate vindo da direção de São Sebastião dos Cristais foi o primeiro a alertar para o fato do bando tomar o rumo da cidade, mas nenhum dos homens de bem deu crédito ao que o mascate dizia. Quatro dias depois o senhor Epifânio Barreiros recebeu em sua casa um negrinho que dizia ter vindo a mando de Raul Adjuto para avisar que dois homens que usavam lenços vermelhos presos no pescoço foram abatidos nos lados do rio São Marcos, e ambos estavam armados.

Epifânio Barreiros repassou a notícia ao delegado e ao senhor Joaquim Ulhôa, que então era presidente da câmara municipal, mas ambos acharam cedo demais para alertar a população. "Eles vão passar direto, Coronel" dizia Joaquim Ulhôa, "não há nada por esses lados que possa interessar a essa gente, a não ser a poeira e os pretos; mas a gente pode encontrar os dois em todo lugar". Era um homem gordo, de olhos pequenos e de um grande nariz afilado, principal herança física que transmitiria aos seus filhos - legais ou bastardos. Em verdade, o que preocupava mais o senhor Joaquim Ulhôa era outro assunto, "E quanto ao dinheiro do gado, Coronel, o senhor poderia se achegar pra jantar conosco dia desses, daí conversamos melhor".

Sant'Ana dos Pilões já fora um povo importante na época em que chamavam as Minas Gerais de província, e não de estado. Muito tempo atrás, o avô do avô do avô do senhor Epifânio Barreiros se instalara na aldeia que os bandeirantes paulistas haviam construído quando encontraram ouro nos aluviões de um córrego largo nascido em uma serra com formato de um pilão. Desde então, o seu sobrenome participou e assistiu todas as etapas da história do lugar: a emancipação febril concedida por dona Maria Louca (rainha de Portugal), a rápida ascensão do mercado do ouro na região e o êxodo que se seguiu na cidade ao fim do ouro fácil. Só ficaram na cidade aqueles que não tinham onde ir e aqueles que tinham terras por aquelas bandas.

Depois foi a guerra do Paraguay, os Barreiros enviaram para o Exército Imperial vários escravos para lutar na contenda, e inclusive o primeiro Epifânio Augusto Barreiros teria lutado na Batalha do Riachuelo, e é por esse motivo que chamavam qualquer homem da família dos Barreiros de "Coronel". A história seguiu com a libertação dos negros, a proclamação da República e outras mudanças de um cosmo maior que não afetava diretamente a realidade na cidade de Sant'Ana: continuava-se fazendo calor, as negras de ancas largas ainda lavavam roupa na prainha dos macacos e as principais famílias do lugar ainda ditavam as regras, como sempre fora e como sempre haveria de ser, com a graça do Nosso Santíssimo Senhor Jesus Cristo.

Agora, um tal de Siqueira Campos, subalterno de um outro tal Luís Carlos Prestes, que saía por aí espalhando a desordem no país com uma horda de maltrapilhos armados, ameaçavam a rotina sacramentada pelo tempo naquele lugarejo esquecido tanto pelo deus cristão quanto pelos deuses negros. Por isso os homens de bem do lugar teriam que pegar em armas mais uma vez para defender a cidade dos revoltosos. Antônio de Siqueira Campos não fazia idéia, mas a simples menção da sua chegada mudaria toda a história de uma família.

11 comentários:

Lorena Leandro disse...

Oi Guilherme, e que surpresa a sua visita! Adoro quando pessoas novas me lêem. Vou voltar aqui mais vezes, porque ler os outros também é muito bom! Abçs, Lorena

LetysKiss disse...

Culpo a sociedade de outras coisas rs , não por moda ,por ser mais cômodo mesmo.


• E muito bom o texto , hoje não muda muita coisa também, não é ?

=)

eloisa disse...

Espera, eu volto e leio!
Volto mesmo e sabe porque? MUITO CRIATIVO O NOME DO TEU BLOG:
Desencontros e poesia
DesenconTos e poesTRia

Aprecio muito esses ataques de criatividade das pessoas.
Um beijo :*

eloisa disse...

Esse teu texto tem cara de Gabriel Garcia Marquez. há!

Guilherme Ferreira disse...

(meu maior medo é que eles sejam parecidos demais)

eloisa disse...

Isso faz parte do teu livro é? rs Gostei muito. Muito mesmo. Esse tipo de narrativa me apetece com facilidade!

Um beijo pra você! :*

eloisa disse...

Ah, não vale! Agora que eu vi que tu lê Garcia Marquez.
Que coisa! Li Cem Anos de Solidão na semana passada.
Bem que eu achei que tudo aqui, tinha um ar de Coronel Aureliano Buendía!
Apesar de ter gostado muito dele, o personagem que mais me "emocionou" foi o Arcadio, filho de José Arcadio com Pilar Terneira, mesmo com seus surtos megalomaniacos. rs

Flora Ramos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flora Ramos disse...

Vim te felicitar pelo blog, agora tive tempo de ler outras postagens mais antigas. A leitura dele é ótima.
E agradeço também por suas visitas.
Você é amigo da Cecília, né? otima menina, ela. :)

abraço!!

Flora Ramos disse...

sim, ja li este livro! é uma ótima recomendação, em todo caso. muto bom.

eloisa disse...

É. Chuva pode ser um recomeço, não vi por este lado. Mas eu escolho o Sol pra recomeçar! :D

Você notou que eu mudei o layout! :)) Ninguém comentou sobre até agora, hahaha. Os peixinhos sempre! rs

Beijo pra ti :*