Não o silêncio do meu quarto, mas sim o silêncio entre duas pessoas.
Naquela noite, tínhamos ido ao teatro. Ela, como sempre, foi crítica até demais: achou a iluminação ruim e a acústica mal implementada. Eu achei legal. A atriz principal interpretava Elektra filha de Agamênon, e tinha uma voz levemente fanhosa. Coisa besta, que quase ninguém deve ter percebido (talvez pela acústica ruim), mas eu percebi. E imaginei a Elektra de verdade - se houver existido uma - sofrendo com problemas de dicção. Ri disso. Ela não entendeu o motivo do meu humor. Fechou a cara e recomeçou a criticar a iluminação.
De lá passamos num supermercado pra comprar bebida. Ela dirigia e isso sempre me deixou incomodado - o fato de depender do carro dela para saírmos. Acho que é uma das atitudes ditas provincianas que eu não conseguia largar. Mal dos homens do interior. Por isso eu fazia questão de pagar suas coisas. O ingresso do teatro, a conta do jantar e a garrafa da vodka com frutas. Poderíamos beber ali no estacionamento, mas com a lei seca os polícias de Brasília andavam rondando esses locais exatamente com a intenção de flagrar motoristas bebendo pra multá-los logo adiante; por isso fomos pro mirante. E no carro mais uma vez: silêncio.
Descemos a pista do mirante ao lado da ponte, ela estacionou no gramado onde antes havia um carrinho de cachorro quente. Descemos do carro, eu com a garrafa na mão e ela com um casaco, braços cruzados bem apertados contra o peito. Resolvi quebrar aquele gelo:
- acho que vai chover. olhei para o céu - nublado, mas sem sinal de chuva.
- acho que a gente tem que beber. ela me disse e se aproximou de mim, passando o braço pelo meu, me trazendo para perto.
Sentamos na grama e eu pelejei para abrir a garrafa. Uma, duas, três tentativas. Mais uma surra no meu ego masculino, e como de costume xinguei alguma coisa. Ela riu. E eu abri a garrafa, passei pra ela e fiquei torcendo minha mão direita. Gole curto. Careta. Gole longo.
- o lago a noite é lindo. me lembra o mar.
- é. (ela tinha me passado a garrafa)
- e se tiver greve?
ela torceu o nariz. eu havia comentado sobre o estágio, mas não sobre ela. sobre nós. Ficamos em silêncio mais uma vez.
- Detesto o silêncio... Esses silêncios que incomodam. Sabe como você sabe quando tem uma pessoa pra vida toda? Quando você pode ficar em silêncio com ela por quarenta minutos inteiros e não se incomodar com isso.
- isso é do Tarantino? (ela perguntou depois de eu tê-la devolvido a garrafa).
- Tarantino. Sim.
- você tá ficando bobo com esses filmes... (me devolve a garrafa sem beber).
Passei a garrafa.
Aproximei pra beijá-la - nós homens tentamos às vezes corrigir certas coisas com beijo ou sexo, algumas delas detestam isso.
Ela afastou o rosto.
- eu quero ir embora... nem me olhou quando disse.
- eu quero ficar.
olhava pro lago. e pior do que o silêncio, é o gosto da frustração. Aquela frustração que senti quando ela se levantou sem me dizer uma única palavra, entrou no carro e se foi. Mais uma vez, silêncio. Ela não estava lá, mas o silêncio entre nós havia ficado. Pelo menos restava a garrafa. Vodka e frutas vermelhas. O lago. A ponte. Bebi até os ônibus começarem a passar.
Ainda detesto aquele silêncio.