15 novembro 2008

Ustedes saben señores muy bien como es esto.


Lá fora uma chuva diluviana caía fazendo com que só os mais temerários se arriscassem a enfrentá-la. Até aquele velho cachorro de rua buscou abrigo na entrada da garagem do prédio, e olhando pela janela entreaberta ele tinha uma sensação de estarem em um abrigo seguro, sendo que o prédio de ferro e concreto não cederia um milímetro sequer por mais forte que fosse a tempestade. Distraiu-se tanto com a chuva que mal se lembrava da pessoa que estava sentada a sua frente, observando-o com certa calma desprovida de sinceridade, porque a verdade é que estava tão impaciente que mal continha seus dedos tamborilando sobre a perna. A moça acabou chamando a atenção do semi-inconsciente com um longo suspiro. "Não vai estiar tão cedo. Talvez você tenha que dormir aqui", ela disse quando percebeu que ele havia ficado constrangido pelo longo silêncio mantido entre os dois.

A sala onde estavam não demonstrava nenhum luxo, e talvez até acusasse a situação de alguém que mora sozinha há algum tempo. As paredes muito brancas não ostentavam nenhum quadro ou fotografia, só um pôster velho com o rosto de Ernesto Che Guevara. Sobre uma mesa de madeira muito nova estavam uma dúzia de livros de diversos assuntos, entre eles astrologia, história do Brasil e um livro do Michel Foucault, entre outros. A única coisa da casa que mostrava certa sobriedade naquele dia saturado de nostalgia era o rosto da própria moradora, embora ela também se vestisse de forma exótica, não muito distante da aleatoriedade do resto do apartamento. Tinha os cabelos castanhos presos num coque comum, usava um casaquinho de lã e uma saia que lhe caía até logo abaixo dos joelhos, porém ele a achou extremamente atraente daquele jeito e naquele dia; sendo que já começava a sentir os calores de uma paixão que há poucos minutos antes parecia tão morta quanto a vontade de estar ali. Quis arriscar um elogio, mas o transtorno do silêncio ainda superava a vontade de falar naquele instante. Acabou dizendo com uma expressão bastante debochada:

- Não faz mal, não é a primeira vez que eu tenho que dormir aqui.

Ela retribuiu o comentário com um sorriso cúmplice, como quem recorda de uma travessura feita em um passado não muito distante. Levantou da cadeira onde estava sentada ainda sorrindo e foi em direção a cozinha, murmurando algo sobre fazer um chá para os dois. Ele se levantou ainda sem dizer nada, pegou um dos livros sobre a mesa e começou a passar os olhos sobre uma página qualquer, enquanto pensava sobre o que fazer naquela situação totalmente imposta pelo destino. Viera ao encontro dela exatamente para confessar que já não tinha vontade alguma de estar junto dela e que ela devia se sentir livre do senso de dever que tinha para com ele. A coisa foi totalmente o contrário: assim que chegou ao apartamento junto com os anúncios do dilúvio tentou evitar o assunto diretamente, dando rodeios e comentado sobre alguns amigos em comum que tinham. Agora ele estava ali, sentindo-se a vontade para mais uma tentativa. Com um pequeno gosto de auto-repreensão na boca por estar sujeito a possibilidade de só estar cedendo por pura luxúria. Quando conseguiu sufocar aquele empecilho, deixou o livro aberto sobre a mesa e foi até a pequena cozinha do apartamento com passo firme e a abraçou por trás, envolvendo seus braços pela cintura dela.

Duas horas depois, quando ela jazia adormecida ao seu lado ele se sentia o mais miserável entre os miseráveis. Ela dormira agarrada a um de seus braços, como uma criança que procura por segurança e a ausência de carinho que ele sentia naquele instante rasgava suas entranhas por dentro. A voz da culpa, aquela mesma que anunciava a luxúria algumas horas antes o castigava e o impedia de olhar para o rosto adormecido dela. Devagar e sem fazer barulho, soltou seu braço, se levantou, vestiu suas roupas ainda sem olhar para a moça nua que ainda dormia, forçando-se a encarar a tempestade pelo vidro da janela. Apanhou uma caneta e escreveu na contracapa do livro de Foucault (que fora um presente dele): "Eu não te amo. Me perdoe. Vá encontrar alguém que te mereça e não me procure mais." e depois deixou-o aberto ao lado da cama.

Saiu do prédio encolhido, olhando para o céu que não cederia naquele instante, nem no dia seguinte, enquanto verificava se não esquecera nada. Caminhou até a saída da garagem onde o cachorro ainda estava abrigado e naquele instante se sentiu mais desaventurado do que o animal: tinha consigo a certeza de que nunca amara ninguém. De que ele, ou as pessoas como um todo, buscavam por uma ilusão fugaz e que o mundo viveria bem melhor sem amor. Que aquela moça que dormia num quarto de apartamento do segundo andar viveria bem melhor se nunca tivesse acreditado que o amava. Tomou coragem e enfrentou a chuva naquele dia molhou toda a sua alma.